sexta-feira, 7 de julho de 2023

MAIO AMARELO: Motocicleta é o transporte que mais mata no trânsito de Fortaleza

Segurança viária para motociclistas ainda está longe do ideal na Capital, apesar dos avanços recentes na política de mobilidade urbana

Por Luciano Cesário (*)

Quem trafega em motocicletas nas vias públicas de Fortaleza tem 12 vezes mais chances de morrer no trânsito do que um motorista de automóvel. O grau de risco tem como base dados divulgados pela Autarquia Municipal de Trânsito (AMC) que apontam as motos associadas a quase metade dos óbitos por acidentes viários registrados em 2022 na Capital.

De acordo com as estatísticas, dos 157 óbitos registrados entre janeiro e dezembro, 49% envolviam pilotos ou passageiros de veículos motorizados de duas rodas, o que corresponde a praticamente cinco em cada dez sinistros fatais. Nos veículos automotores, o percentual foi de 4%. Em números absolutos, foram 76 vítimas de acidentes com motocicletas contra seis em ocorrências de veículos automotores.

Os números seguem uma tendência histórica. Desde 2014, os condutores de motocicletas são maioria entre as mortes decorrentes de acidentes de trânsito em Fortaleza. Durante este período, a proporção de sinistros fatais com motociclistas foi até dez vezes maior em relação aos motoristas de carros. Em 2017, por exemplo, foram 130 mortes de motociclistas e 13 de motoristas ao volante.

A desproporcionalidade evidencia que a segurança viária de quem trafega sobre duas rodas no trânsito da quinta maior cidade do Brasil ainda está longe do ideal, apesar do alto investimento em mobilidade urbana feito pela Prefeitura na última década.

Desde 2013, as autoridades apostam em políticas de expansão do transporte público e no incentivo ao uso da bicicleta como estratégias centrais para otimizar o espaço coletivo e reduzir o número de acidentes.

Nos últimos dez anos, os corredores exclusivos para ônibus aumentaram de 4,11 km para 132,8 km, segundo informou a AMC. A medida serve para desafogar o fluxo de veículos nas artérias mais movimentadas, principalmente nos horários de pico, aumentando a velocidade média dos coletivos e dando maior fluidez ao trânsito.

Simultaneamente, a malha cicloviária cresceu mais de 500%. Em 2013, Fortaleza contava com 68 km de ciclofaixas ou ciclovias. Atualmente, segundo o órgão municipal de trânsito, são 419,2 km. Somente nos últimos dois anos a Capital ganhou cerca de 71,2 km de espaço exclusivo para circulação de bicicletas, expansão recorde para o período.

As ações surtiram efeito. Em dez anos, o patamar de acidentes de trânsito caiu 57%, passando de 369 ocorrências em 2012 para 157 em 2022. Desde 2014, as quedas nas estatísticas são consecutivas. O índice de mortes por 100 mil habitantes também foi reduzido de 14,8 para 6 no mesmo período.

Apesar dos avanços, o gerente de educação para o trânsito da AMC, André Luís Barcellos, afirma que a segurança viária dos motociclistas ainda é um “grande desafio" no trânsito da Capital.

Ele sublinha que a alta proporção de acidentes de motos em relação aos veículos automotores não é uma equação fácil de se explicar. “Isso se deve a uma série de fatores, mas principalmente porque é um usuário mais exposto e a moto é um veículo mais vulnerável diante de um carro e de um caminhão, por exemplo”.

Em Fortaleza, segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran), existem 358 mil motocicletas em circulação. É a maior frota entre as nove capitais do Nordeste. O número de motos é pouco mais da metade dos cerca de 632 mil automóveis registrados.

Para prevenir conflitos viários entre os veículos de duas e quatro rodas, Fortaleza tem investido nas faixas de retenção, também conhecidas como “motobox”, um tipo de sinalização horizontal que dá prioridade aos motociclistas na abertura do sinal. “Temos quase 200 áreas com essas faixas atualmente. Como a moto fica à frente dos carros, a chance de colisão reduz drasticamente”, frisa o gerente da AMC.

Segundo Barcellos, entre as infrações mais recorrentes cometidas pelos condutores de motos estão transitar nas ciclofaixas, avançar sinal vermelho, realizar conversões irregulares e não utilizar capacete. Todas elas, comenta o gerente, são determinantes para a alta proporção de acidentes.

Mirando nessas irregularidades, o órgão de trânsito tem intensificado blitze exclusivas para motociclistas. Nas fiscalizações, os agentes observam os equipamentos obrigatórios, o sistema de iluminação e o estado dos pneus dos veículos, além de checar o uso adequado do capacete e exigir a habilitação dos condutores.

Custo do tratamento a acidentados de motos cresce quase R$ 10 milhões

Tragédia pessoal para as vítimas, os acidentes de trânsito com motociclistas custam caro aos cofres públicos. Em dez anos, o gasto médio do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender pacientes acidentados em veículos de duas rodas no Ceará cresceu mais de 150%. O montante passou de R$ 5,6 milhões em 2012 para R$ 14,1 milhões em 2022.

Os dados constam no Sistema de Informações Hospitalares, do Ministério da Saúde, e foram fornecidos ao O POVO pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). São números referentes àqueles pacientes que estiveram em leitos públicos de internação (enfermaria ou UTI) antes do falecimento.

O recorde de despesas no decênio foi registrado em 2021, com R$ 14,2 milhões aplicados no tratamento dos enfermos. No total, mais de R$ 118 milhões saíram do orçamento público nas três esferas para pagar despesas hospitalares de motociclistas envolvidos em sinistros de trânsito. O valor corresponde a 62% do total investido nas internações das vítimas de todas as categorias veiculares (R$ 178,4 milhões) durante o período.

Mesmo com o alto investimento, pessoas acidentadas em motos têm mais chances de morrer ou desenvolver sequelas físicas que as incapacitam para o trabalho e atividades quotidianas. É o que afirma o cirurgião vascular e pesquisador da área de segurança viária, Lineu Jucá, autor de um estudo abrangente sobre as causas e consequências dos acidentes de motos no Ceará.

Realizada entre 2011 e 2012, a pesquisa acompanhou o tratamento de 604 pacientes ao longo de 13 meses no IJF, hospital de referência para atendimento de vítimas com fraturas múltiplas. Com base nos resultados da observação, o médico aponta que acidentes com motocicletas são 27,5% mais graves do que os automobilísticos e matam até 7 vezes mais em relação aos sinistros com veículos de quatro rodas.

Segundo Jucá, a alta incidência de acidentes com motocicletas reflete uma combinação de três agravantes: falta de fiscalização, condutores inabilitados e ingestão de bebidas alcoólicas. “A moto chegou e ficou. Não tem como você ir contra essa realidade, mas por ela ser mais vulnerável, a atenção deveria ser maior e o que a gente vê é justamente o contrário”, disse o médico em entrevista ao O POVO.

Na pesquisa que conduziu, ele disse ter identificado uma correlação “muito forte” entre os acidentes de motos e as bebidas alcoólicas. “42% dos pacientes relataram ter consumido álcool antes do acidente. E o que mais chama a atenção é que 62% dos sinistros ocorreram entre sexta-feira e domingo, o período em que as pessoas mais bebem”, pontuou.

Aliado à ingestão de álcool, cerca de 55% dos hospitalizados admitiram que não tinham habilitação para conduzir motos, segundo detalhou o médico. “Se nós temos motociclistas inabilitados e alcoolizados circulando pelas ruas, o que falta é fiscalização”, sublinhou Jucá, que também é membro da Academia Cearense de Medicina (ACM).

Além de maior controle sobre o tráfego, o médico sugere mudanças na legislação. Para ele, o acesso à habilitação deveria ser mais rigoroso e em níveis diferenciados a partir das cilindradas das motos. Citando o exemplo de Medellin, capital da Colômbia, também propõe que os capacetes sejam identificados com a mesma numeração da placa das motocicletas para multar condutores que não utilizam o item de proteção.

A aposta na prevenção, na visão do especialista, é o caminho mais promissor para reduzir os acidentes e evitar sequelas permanentes para os sobreviventes. Entre os pacientes acompanhados pela pesquisa, 64% tiveram lesões nos membros inferiores e 36% nos superiores.

Álcool e imprudência: O caminho das vítimas desviado para o hospital

Nas enfermarias do Instituto Doutor José Frota (IJF), em Fortaleza, muitas histórias se cruzam pelo mesmo caminho. Os jovens Felipe Almeida, 18, e Marcelo Mendes, 20, ambos do interior do Ceará, ilustram essa realidade. Os dois foram parar nos leitos do hospital pelo mesmo motivo: acidente com motocicletas.

As razões também são idênticas. No dia dos sinistros, eles trafegavam sem capacete, voltavam de festas para casa e tinham ingerido bebidas alcoólicas. A consequência também foi a mesma: traumatismo craniano. Socorridos em estado grave, os dois passaram por cirurgias de emergência.

Felipe, que mora em Itapipoca, no Litoral Oeste do Estado, deu entrada na unidade no dia 7 de abril, no feriado da Sexta-Feira Santa, após colidir frontalmente a moto que pilotava com outra motocicleta, na CE 402, que liga Itapipoca a Amontada. Ele estava na companhia de uma amiga, que teve apenas ferimentos leves.

Já o condutor, que não tinha habilitação, sofreu um forte impacto na cabeça. O paciente foi submetido a uma cranioectomia descompressiva e teve parte da calota craniana cortada e colocada no lado esquerdo da parede abdominal.

Ainda com lapsos de memória, em decorrência da cirurgia, o jovem diz não recordar detalhes do acidente, mas reflete que tudo poderia ter sido evitado. “Acho que não dei muita atenção por conta da bebida”, admite Felipe, cujo pai, o agricultor José Cleumir, o acompanha no hospital desde o início da internação.

“Se ele estivesse andando de capacete, não teria dado essa pancada grande na cabeça. Mesmo assim, a gente tem que agradecer a Deus. Ele morreu e nasceu de novo, o médico foi quem me disse isso”, contou Cleumir, que aguarda a liberação de uma nova cirurgia para o filho, a cranioplastia, procedimento para a reconstrução do crânio.

Internado numa enfermaria do mesmo andar, Marcelo, que mora em Quixadá, no Sertão Central, sofreu acidente exatamente um mês após Felipe, no dia 7 de maio, após perder o controle da motocicleta que pilotava, na CE 265.

“Acho que as cervejas que bebi deram sono, e era de madrugada, estava muito frio, aí o juízo da pessoa fica mais lento”, relembra ele ao falar sobre as causas do sinistro.

Também submetido a uma cirurgia no crânio, no dia 14 passado, ele se recupera do trauma com a esperança de voltar para casa o mais breve possível. “A coisa que mais quero é receber alta e poder voltar com minha vida normal. Nunca mais vou andar sem capacete ou tendo bebido”, afirmou o paciente.

De acordo com o superintendente adjunto do IJF, Fernando Façanha, os motociclistas são a grande maioria nos atendimentos motivados por acidentes de trânsito. No primeiro quadrimestre deste ano, foram cerca de 2,9 mil internações, ou 71% do total (4,1 mil).

“A maioria dos pacientes está na idade produtiva, são jovens. Eles eventualmente usam a moto como meio de transporte para trabalhar, mas também como meio de lazer, o que envolve a ingestão de álcool e acaba resultando nos acidentes”, explicou Façanha.

O superintendente destaca que o número de atendimentos está em crescimento há dois anos. De 2020 para 2021, passou de 8,4 mil para 9 mil, alta de 7,1%. Em 2022, chegou a 9,4 mil, aumento de 4,4% em relação ao ano anterior.

A maior parte dos pacientes, segundo o médico, vem de municípios do Interior. “A rede estadual não está capacitada para atender esses casos mais complexos”. O aumento na demanda, segundo Façanha, tem pressionado a capacidade de atendimento do hospital.

“Estamos realizando reuniões com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) para pedir que parte desses pacientes sejam absorvidos pelos hospitais regionais para descentralizar mais essa demanda”, completa. Dos pacientes atendidos entre janeiro e abril deste ano no IJF, 55% são do Interior e 45% da Capital.

Menos velocidade, mais vida: Fortaleza amplia controle sobre trânsito para reduzir acidentes

Na esteira da campanha nacional Maio Amarelo, cujo objetivo é conscientizar motoristas e pedestres sobre os cuidados no trânsito, a Prefeitura de Fortaleza anunciou que vai expandir a redução dos limites de velocidade para mais dez avenidas.

Os trechos serão readequados de 60 km/h para 50 km/h. Desde 2018, quando a medida começou a ser implantada, 50 vias da Capital passaram a operar sob esse padrão. No começo de maio, as avenidas Dom Manuel e Aguanambi, entre os bairros Centro, Joaquim Távora e Fátima, também tiveram os limites reduzidos

Até o fim do mês, a readequação também será realizada nas avenidas Treze de Maio, no Benfica, e na Porto Velho, entre o Henrique Jorge e o João XXIII. Nos próximos três meses, mais seis vias terão velocidade reduzida, segundo informou André Luís Barcellos, da AMC, que classifica a medida como estratégica e eficaz para a redução dos acidentes de trânsito na Capital.

“Quando você reduz a velocidade, você melhora o tempo de reação e a pessoa passa a ter uma visão mais ampla do seu redor. Sem contar que é um elemento que diminui o grau de severidade de acidente”. Segundo o gerente, nas vias com a velocidade reduzida, as chances de sobrevivência aumentam dez vezes em caso de sinistros.

A redução é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que aponta a velocidade excessiva como causa de uma em cada três mortes por acidentes de trânsito em todo o mundo.

De acordo com a AMC, houve redução de acidentes e mortes em todas as avenidas de Fortaleza onde a política foi implantada. A primeira a receber a redução foi a avenida Leste-Oeste, que corta cinco bairros da Capital, em 2018.

A via, que era considerada uma das mais perigosas da cidade, principalmente para usuários vulneráveis como pedestres e ciclistas, encerrou 2022 sem registrar nenhuma morte no trânsito. Entre 2010 e 2017, foram 11 óbitos.

De acordo com Barcellos, os locais que passam pela readequação não são escolhidos aleatoriamente. “Primeiro, a gente estuda a via, melhora a sinalização, aumenta as áreas de travessia para pedestres, faz algumas intervenções nas calçadas, melhora a iluminação e depois de tudo isso é que a sinalização de velocidade é trocada”.

Após a troca dos limites, os motoristas têm até seis meses para se adequar à nova regra. A atuação por excesso de velocidade está prevista após esse período da adaptação.

(*) Jornalista de O Povo, luciano.cesario@opovo,com.br

Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/05/23. Reportagem. Cidades, p.4-5.

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