Por Patrícia Soares de Sá Cavalcante (*)
Caminhava pela calçada quando parei diante
de uma banca. Na capa da revista Quatro Cinco Um, a manchete: "Cem anos de
Mrs. Dalloway", um clássico de Virginia Woolf. Que coincidência! Havia
terminado o livro naquela semana. Fiquei feliz; para mim, a revista era um
presente que chegava na hora certa. Comprei-a e comecei a folheá-la, sentada em
uma loja próxima, quando um senhor entrou sozinho e perguntou: - Eu tô ficando
velho, e a calça cresceu. Vocês fazem o ajuste?
A vendedora foi solícita e sorriu. Achei uma
graça a pergunta dele. Inverteu a perspectiva: não foi ele quem diminuiu, foi a
calça que cresceu. O passar dos anos não lhe diminuía o tempo que viria; ao
contrário, alargava a trama do tecido da vida vivida.
"Mrs. Dalloway disse que ela mesma
compraria as flores." Assim começa o livro, que se passa concretamente em
um único dia, cujas vinte e quatro horas são marcadas pelas badaladas do Big
Ben. Mas, entre um som e outro, cabe uma vida inteira. As horas que o relógio
mede são poucas diante das que a memória de Clarissa, a protagonista, abriga. O
tempo de fora corre em linha reta, o de dentro se esparrama, desdobra-se e se
multiplica para todos os lados. É infinito.
Fiquei pensando em como usufruir melhor do
que nos é mais sagrado: o tempo. Não apenas na dimensão da quantidade ou das
escolhas que dão sentido aos nossos dias, mas também na forma de alargar a
trama da existência, para que ela não cresça só no comprimento, e sim na
densidade do que vivemos.
Clarissa Dalloway saiu em busca de flores,
eu fui à banca de revista, e aquele senhor saiu para ajustar a calça. Há uma
semelhança entre nós três: estávamos fazendo coisas triviais, comuns à rotina
da vida diária. Não havia nada de extraordinário em nossas ações.
Um livro escrito há cem anos foi capaz de
me tocar e transformar um instante comum em algo mais profundo, que vai além do
que simplesmente "acontece". O passado e o presente pareciam um só,
eu estava aqui e lá. São os pequenos momentos em que o banal se torna sagrado -
e a vida, maior.
(*) Médica
psiquiatra.
Fonte:
Publicado In: O Povo, de 4/11/2025.
Opinião. p.16.

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