quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

A CALÇA CRESCEU

Por Patrícia Soares de Sá Cavalcante (*)

Caminhava pela calçada quando parei diante de uma banca. Na capa da revista Quatro Cinco Um, a manchete: "Cem anos de Mrs. Dalloway", um clássico de Virginia Woolf. Que coincidência! Havia terminado o livro naquela semana. Fiquei feliz; para mim, a revista era um presente que chegava na hora certa. Comprei-a e comecei a folheá-la, sentada em uma loja próxima, quando um senhor entrou sozinho e perguntou: - Eu tô ficando velho, e a calça cresceu. Vocês fazem o ajuste?

A vendedora foi solícita e sorriu. Achei uma graça a pergunta dele. Inverteu a perspectiva: não foi ele quem diminuiu, foi a calça que cresceu. O passar dos anos não lhe diminuía o tempo que viria; ao contrário, alargava a trama do tecido da vida vivida.

"Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores." Assim começa o livro, que se passa concretamente em um único dia, cujas vinte e quatro horas são marcadas pelas badaladas do Big Ben. Mas, entre um som e outro, cabe uma vida inteira. As horas que o relógio mede são poucas diante das que a memória de Clarissa, a protagonista, abriga. O tempo de fora corre em linha reta, o de dentro se esparrama, desdobra-se e se multiplica para todos os lados. É infinito.

Fiquei pensando em como usufruir melhor do que nos é mais sagrado: o tempo. Não apenas na dimensão da quantidade ou das escolhas que dão sentido aos nossos dias, mas também na forma de alargar a trama da existência, para que ela não cresça só no comprimento, e sim na densidade do que vivemos.

Clarissa Dalloway saiu em busca de flores, eu fui à banca de revista, e aquele senhor saiu para ajustar a calça. Há uma semelhança entre nós três: estávamos fazendo coisas triviais, comuns à rotina da vida diária. Não havia nada de extraordinário em nossas ações.

Um livro escrito há cem anos foi capaz de me tocar e transformar um instante comum em algo mais profundo, que vai além do que simplesmente "acontece". O passado e o presente pareciam um só, eu estava aqui e lá. São os pequenos momentos em que o banal se torna sagrado - e a vida, maior.

(*) Médica psiquiatra.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 4/11/2025. Opinião. p.16.


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