"...na alma, toda experiência tem a forma de cicatriz"
E
tem. A primeira vez que Claudinha foi assaltada deixou marcas profundas na alma
"principalmente no juízo". Esgueirava-se pela Liberato Barroso, em
busca da Av. do Imperador, pela calçada - tarde chuvosa, quando aparente pacato
casal dela se aproxima, vindo do outro lado da rua. O homem, portando uma
tesoura cega; a mulher, um terço faltando cinco contas. Pedem encarecidamente à
vítima dois vales-transportes, três pastilhas Valda e 10 reais "de
preferência em notas de 2". Claudinha emudece do susto.
-
Hum, hum, hum, hum!!! Hum!!!
-
É mudinha, ela! - imaginou a meliante.
-
Desembucha, senão tu vai ver o que é bom tosse! - impõe o ladrão.
-
Pra tosse, xarope Melagrião! - ensina a vítima.
-
Ela fala!!!
Refeita
do susto, Claudinha, referindo-se aos 10 reais...
-
Pode ser duas de cinco, colega? - pelando-se de medo, em risco de dar uma
"pilôra".
-
É, vai!!! E os vale? Passa logo! - disparou a companheira do ladrão, "que
tinha cara de Socorro", imaginou Claudinha, ao ser instada.
-
Posso dar só um, minha senhora? O outro é pra eu voltar de topique, moro no
Siqueira! Longe que só!
-
Tá bom, tá bom! Loura véa lisa, serve nem pra ser assaltada!
-
Lisa, vírgula, sua... - Claudinha retruca, mas pensa no perigo da desvantagem
numérica.
-
Ok, ok, ok! Tome! E antes que eu esqueça: ainda querem as pastilhas?
-
Não! Chau!
Era
o casal que se afastava celeremente do local do crime, pois vinha gente se
aproximando. E Claudinha, com a partida da dupla marginal? Caiu durinha pra
trás! Até ser socorrida por um povo que vinha vindo de lá. Ao tornar, já dentro
de uma mercearia, pálida, perturbada...
-
Onde estou? Que se passa? Cadê o Papai Noel?
-
Calma, dona, calma! Você foi encontrada desmaiada no meio da rua e uma senhora
e o filho dela a trouxeram para cá. Está melhor agora?
-
Ah, desculpa! Estou. Foi a agoniação do assalto! Obrigada pelos cuidados.
Vou-me já que está pingando...
Realmente,
a chuva começara
Claudinha
já em casa e tal e coisa e coisa e tal... E os anos se passaram. Certo dia,
voltando agora da empresa pela Guilherme Rocha, quem ela divisa a mais ou menos
30 metros de onde se encontrava? O mesmíssimo casal de malfazejos, dirigindo-se
ao seu encontro. Pelo aperreio da situação, a criatura de novo perde a fala. A
suposta Socorro dispara:
-
Passa as chinelas havaianas, o cordão de ouro e a sombrinha!!!
-
Hum, hum, hum, hum!!! Hum!!!
-
Largue de frescura! Tu num é muda não!
-
E num sou mesmo não?!? - disparou Claudinha, irritada e corajosa. - Casal de
ladrão fí duma ééééégua!!!
O
magarefe não gostou do que ouviu e trava-se ali acalorada discussão:
-
Ei, freguesa! Fí duma égua não! Respeite ao menos mamãe!
-
Magote de ladrão metido, pode ser?
-
Ah, assim sim!
-
Pois então, socoooooorro!!!
-
Ela sabe meu nome, Zé! Tamo lascado! Corre, macho! Ela é perigosa!
E
Claudinha, com a fuga da dupla marginal? Caiu durinha pra trás!
Fonte: O POVO, de 7/11/2025. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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