domingo, 28 de abril de 2024

Causo Médico: TIRANDO AS CEARENSES DO CARITÓ

Na primeira metade do século XX, quando se dispunham de poucas faculdades no Ceará, era fato comum os jovens cearenses, pertencentes a famílias de maior poder aquisitivo, emigrarem para outros estados a fim de cursarem Medicina.

Logo após a II Grande Guerra, toma corpo em Fortaleza um movimento, com vistas à criação de uma escola médica no Ceará, cuja empreitada viria a vingar em 1948. Um dos fatores que contribuíram para isso foi a pressão da sociedade local, máxime das classes mais altas, para que os médicos se formassem aqui mesmo, pois já batia um cansaço de perder garbosos jovens, rapazes citadinos, para as cariocas, baianas, pernambucanas etc., com as quais contraíam núpcias, deixando as cearenses no mais autêntico “ora vejam só o que aconteceu”.

Se já engatado um namoro ou um noivado, aqui na capital cearense, diante da dificuldade de manter ativos os contatos com os familiares, do alto custo das passagens e da demora no percurso, o reencontro se limitava aos períodos das férias, normalmente as do final de ano, que eram mais longas, uma vez que, nas de julho, boa parte do período era consumida no deslocamento. Com o avançar do curso e à medida que se aproximava a formatura, os acadêmicos, já preocupados com o futuro exercício profissional, engajavam-se em estágios nos serviços hospitalares, como Pronto Socorro e Santa Casa, para adquirir a prática necessária, e assim terem mais segurança para o momento em que viessem a assumir o trabalho médico. De um modo geral, os retornos ao Ceará rareavam, substituídos por cartas com as devidas desculpas pela ausência. E, quase sempre, eram as moças casadoiras que ficavam no prejuízo.

A distância da família, a vida em repúblicas ou em pensões e a própria idade, na plena efervescência juvenil, deixavam os estudantes carentes e ansiosos por contatos femininos. Não era difícil que, nesse ambiente, prosperassem oportunidades para a iniciação ou intensificação sexual com mulheres, inapropriadamente, ditas de vida fácil. Quando não, o “flirt” era só o começo de um relacionamento mais estreito com “moças de família”, em idade de casar e em condições de oferecer as benesses de um casamento vantajoso. Como, amiúde, os rapazes eram de “boa família”, e, portadores, em breve, de um diploma de médico, o que conferia elevado status social ao seu detentor, era até natural que fossem assediados pelas jovens desejosas de ter um bom partido, firmando um contrato matrimonial que garantisse uma existência confortável.

Alguns dos nossos emigrados, movidos pelos atrativos da cidade grande, que os acolhera por seis anos, criaram vínculos, sociais, afetivos e/ou laborais, sendo ali retidos. A grande maioria, no entanto, por sorte, voltava às suas raízes, regressando ao torrão natal; contudo, por um suposto azar, parte deles retornava ostentando uma aliança de noivado, refletindo um compromisso nupcial; alguns até chegavam casados, e nem sempre com uma mulher que caía nos agrados de sua família, a exemplo de certas baianas, com uma tez mais impregnada de melanina, numa época em que os preconceitos raciais vicejavam visivelmente na Terra da Luz, apesar de ser pioneira da abolição escravagista no Brasil.

O compromisso nupcial dos médicos recém-chegados causava um certo transtorno social, frustrando expectativas matrimoniais, desfalcando a prata da casa e também deixando no caritó, muitas moçoilas na flor da idade. Era, talvez, como países em conflagração, cuja força viril foi deslocada para os campos de batalha, num distante “front”, despojando as mulheres de seus cobertores auriculados.

Não é à toa, que a aprovação da instalação da Faculdade de Medicina do Ceará, em 1948, foi comemorada, em notícia de jornal, como algo alentador, no sentido de assegurar bons partidos para as moças “casadoiras” do nosso estado, ameaçadas pelo estigma de se tornarem “vitalinas” e nunca mais saírem do caritó.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Da Sobrames/CE e da Academia Cearense de Médicos Escritores

Fonte: SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina, meu humor! Contando causos médicos. 2.ed. Fortaleza: Edição do Autor, 2022. 144p. p.38-40.

* Republicado In: SILVA, M.G.C. da. AMC. Causo médico: tirando as cearenses do caritó. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Novembro de 2022 - Edição n.16, p.24(online).


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