sábado, 13 de abril de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: Renato Dantas conta Juazeiro do Norte

Por Izabel Gurgel (*)

Renato se cria em uma cidade encantada. Menino nos anos 1950, toda sexta-feira santa, com seus irmãos Raimundo e Cícero, sobe e desce, a bem dizer brincando, a colina sagrada na Serra do Catolé. Vão cedinho. Às vezes tão cedo que o sol ainda não apareceu.

No caminho, Madrinha Isaura conta Juazeiro. Uma fonte, como o rio Salgadinho. O rio tem as águas. A madrinha, as histórias. Os irmãos se banham na passagem fluida entre a cidade e a colina. Renato é um peixe naquelas águas.

A partir da elevação à vila, a cidade é de 1911. Começa bem antes, sabemos. Surge no meio do caminho entre um lugar e outro, feito ponto de descanso para prosseguir (a) viagem. Um destino bonito, não é, o de ser um lugar que acolhe e dá ânimo para seguir?

O pouso era à sombra das árvores que deram o nome à cidade. Você e eu sabemos, juazeiros permanecem frondosos e frescos mesmo com escassez d'água. Milagre?

O milagre é parte da cidade como as mãos são do nosso corpo. As mãos são outras fontes de milagre por lá.

O milagre ao qual nos referimos foi no dia primeiro de março de 1889. Naquele ano, como agora em 2024, uma sexta-feira.

Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo sente muito: a hóstia se transforma em sangue na sua boca. A gente diz na boca mas sentir, sabemos, é no corpo todo. Era do Crato o padre celebrante. Cícero Romão Batista (1844-1934) passa a morar no povoado em 1872.

O acontecimento se repetiu várias vezes, a moça beata comungando também com outros sacerdotes. Ganhou o mundo. Como uma cheia do rio, transbordou. O padre chegou a ser proibido de celebrar. O túmulo da mística Maria de Araújo (cerca de 1862 - 1914) foi destruído. Era para apagar, mas, como diz parte da Física sobre o Universo, segue em expansão.

Nunca mais parou de chegar gente. Quem voltava para casa, saia pensando em vir sempre. Muitos ficavam, como a família da Madrinha, de Alagoas. O lugar é um ímã. Chama.

Tornou-se professor o menino morador da Rua Nova, a atual avenida Dr. Floro. Em 2004, no seminário internacional alusivo aos 70 anos da morte do Padre Cícero, eu o ouvi contar da convocação do Padrinho à constelação romeira: "Tragam sua arte para o Juazeiro do Norte".

A aplicação da máxima beneditina - oração e trabalho - deu na cidade cheia de casas com seus altares e oficinas. Sagrado saber fazer. O que se pode ver ali mesmo na velha estrada, atual Rua do Horto: "Cada casa, uma capela", diz Renato, ator, dramaturgo, pesquisador das muitas vidas do lugar, como o mundo feitos a mão por mulheres e homens. Forjada pela necessidade, uma escola de inteligências e sensibilidades.

Juazeiro tem seu próprio evangelho. O Salgadinho é o rio Jordão. Três quilômetros depois do Horto das Oliveira, fica o Santo Sepulcro. A Pedra do Joelho atesta a passagem de Maria e José, com o filho. Na parada para descansar, o joelho dela deixou marca na rocha.

Subo o Horto com Renato, ou escuto sua fala encantatória na imaginação, e é sempre como se ele fizesse oferendas de palavras novas a cada pedaço do caminho. As pedras cantam. Nos ombros de um sábio e gentil gigante, vou em estado de descoberta do mundo.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 3/03/24. Vida & Arte, p.2.


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