O caneco por um doce
de leite
Raimundo de João Felismino, “dotô de duas laigura” –
graduado e pós-graduado. Nascido nas brenhas cearenses, estava na cidade havia
oito anos. Tinha um sonho: levar seus professores à fazenda onde nascera, onde
moram os pais. Só para experimentarem a comida boa e farta característica dos
velhos, notórios por empurrarem dicumê nos convidados, até dizer chega.
- Caba só se alevanta da mesa com o bucho pela goela,
golfando! – dizia o pai.
- Depois tibunga na rede e dorme inté o caneco fazer
bico! – reforçava a mãe.
Deu certo naquele maio chuvoso bom de curimatã ovada.
Caravana chega beirando meio dia em micro-ônibus - João, os mestres da
“facundade” e as respectivas esposas. Famélicos e desejosos de ligeiro provar a
‘cumiduria’ afamada dos genitores do aluno dedicado e gente fina, agora “dotô
de duas laigura”. No alpendre de casa, à chegada, coisinha pouca pra enganar
tripa: bacias pela tampa de milho verde, mangas, atas e goiabas e “almêxa do
mato”.
- E uma carrada de ovo de capote cozido ouvindo a
conversa! – gabava-se o pai.
- Pra quem apriceia farinha... – jactava-se a mãe.
O prato principal do almoço: perua jandaia no leite do
coco. Na verdade, três dessas aves, cevadas – chiqueiradas de sete dias.
Sobremesa: caçuá de seriguela inchada de entrada e, a seguir, o valendo: doce
de leite de caroço. Pense num doce! Mas teve um probleminha. Apenas dois pires
pra servir 18. O pai de João reclama:
- Se tivesse me falado, mulher, tinha comprado um
balseiral desses pirex...
- E agora, homi?
- Vamos servir os ‘prefessô’ primeiro, eles são
educado... Depois, o povo de casa.
Pospasto divino, fazendo que um dos professores educados
esquecesse a etiqueta. Foi à cozinha, no maior verme, e comeu bocados
(acompanhado da esposa) diretamente na panela, ainda fervendo. Com as mãos.
Diante da arrumação, o pai de João oferece caneco d’água ao docente esgalamido,
assaz admirado:
- Não sabia que o dotô apriciava tanto um docim de leite
com caroço!
- Dou até o
caneco por esse troço, meu senhor!
Maxixe da saudade
No Alto dos Bodes morava Zé Galego, cabra bruto à moda
canto de cerca. A bodega era em casa. Especializou-se em tira-gosto pra
cachaça, toda qualidade de cana que se possa imaginar. Pra testar se Zé era
mesmo da turma de seu Lunga, quem lá esteve? Totonho Cabeça de Prego. Que, no
pé do balcão, perguntou besteira:
- O que é que o colega tem pra beliscar?
- Alicate, ‘troquês’, meus dedo...
Daí a lapada de cana entornada no seco. E logo Totonho se
reclama:
- Diabo de cachaça amaiga, azeda, ruim de engolir?!?
- O decente devia então ter pedido doce de leite, pudim,
cocada, mariola...
- Pois me dê uma coisa quente pra limpar a desgraça dessa
cana na garganta!
Zé Galego foi lá dentro e cozinhou dois maxixes em lenha
de angico (pau que dá fogo mais quente que o centro do inferno). E trouxe a
parelha queimando prato. Totonho, pra mostrar que era macho, toma outra reada
de pôde sem futuro e morde o cão do maxixe. Que de tão quente anestesiou-lhe a
boca. Ele agora nem engole nem cospe o maxixe. Lacrimeja... Ao ver o sujeito
choramingar, Zé Galego pergunta o que foi. E a resposta do chorão, que não dá o
braço a torcer...
- Macho, é
saudade de mãe!!!
Fonte: O POVO, de 6/1/2018.
Coluna “Aos Vivos”, de Tarcísio Matos. p.8.
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