quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Mostra aborda intolerância religiosa a partir da Inquisição

Por Lara Montezuma (*)

Nova exposição do MAUC reflete sobre a história e os símbolos por trás da Inquisição portuguesa. Material deriva de biblioteca especializada com mais de 2.000 itens

Implantado em 1563 e vigente por quase três séculos, o Tribunal da Inquisição foi inicialmente estabelecido em Portugal por Dom João III durante o papado de Paulo III. O movimento envolvia como base a punição dos cristãos - novos, termo então utilizado para fazer referência a judeus que foram batizados anteriormente à força, mas que continuavam com suas próprias práticas religiosas em casa. A partir desta organização, também passou a perseguir e julgar demais doutrinas consideradas heréticas, como o protestantismo e o monoteísmo, assim como práticas tidas como pecaminosas, a exemplo da feitiçaria, astrologia e bigamia.

A temática é centro da exposição “Ler a Inquisição em Tempos de Intolerância”, disponível para visitação até o dia 12 de novembro no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC). Com curadoria feita pelo jornalista e historiador Nilton Melo, investigador correspondente do Centro de Humanidades (CHAM) vinculado à Universidade de Lisboa e à Universidade de Açores, a mostra destaca os reflexos da instituição no Brasil Colônia e, sobretudo, no Ceará. “Me pareceu conveniente, principalmente para o momento, fazer uma reflexão sobre essa questão. Foram questões de grupos sociais dominantes que se aliaram à Igreja e ao Poder Civil, no sentido de calar uma minoria que tinha uma forma de pensar e um modo de viver diferenciado da maioria”, explica Nilton.

Para impedir a introdução de novos elementos de fé, a Inquisição utilizou métodos de censura e tortura - entre interrogatórios, massacres e fogueiras - em habitantes da Penísula-Ibérica. “Uma fortaleza de determinados grupos resolve interferir na vida privada de outro, obrigando a ter uma religião, confiscando bens e pondo uma verdade única, ou seja, sem respeito”, complementa. O pesquisador aponta que, em tempos de intolerância religiosa, discutir este fato histórico é de extrema importância. “O que a gente pode dizer é que o que aconteceu lá atrás pode ser analisado e interpretado como um processo que, muitas vezes, pode se repetir em outro momento com outro formato”.

Nilton cita, por exemplo, os crescentes casos globais de movimentos antissemitistas e o processo eleitoral brasileiro “movido pelo debate religioso”, com circunstâncias que podem ser “terrivelmente bizarras”. De acordo com o jornalista, quando a religião se funde com a política, há consequências “graves e inimagináveis”. Resgatar o contexto da Inquisição é, portanto, repassar alertas. “A exposição tenta ser um instrumento de informação, uma tentativa de ampliar o conhecimento. A Inquisição deixa essa lição de que o Estado não tem que se meter na vida do cidadão. As pessoas querem liberdade, ter seus valores, crenças, tradições e heranças. É necessário que isso seja respeitado da forma mais republicana possível".

Com caráter pedagógico, o projeto dispõe de itens do acervo da biblioteca especializada de Nilton, composta por dois mil títulos que variam entre escritos sobre Inquisição, judeus, cristão-novos e intolerância. Os materiais possibilitam a troca de conhecimento com grandes referências do assunto em países como Portugal e Brasil, contemplando dissertações, teses, romances, estudos, revistas ilustradas e documentos, por exemplo. "Eu tento mostrar por blocos que nós tínhamos os judeus em Portugal, eles viviam rente àquela nação. A Inquisição serviu porque é uma aliança entre o rei e a Igreja e, a partir daí, vem a perseguição aos hereges, aos cristãos-novos", situa o historiador.

O espaço, portanto, traz alguns elementos importantes. Há a representação de fogueira perto de livros relacionados à temática, para mostrar a perspectiva de que "para vencer a ignorância é preciso ter o conhecimento, a leitura". Também há uma adesivagem do Terreiro do Paço, ponto turístico de Lisboa, local onde eram realizadas as queimadas vivas. "Ao mesmo tempo mostramos os sambenitos criados pelo estilista Lindembergue Fernandes, roupas que os condenados usavam", adiciona Nilton. A mostra, com projeto expográfio de José Edelson Diniz,  também apresenta um mapa-múndi com mais de 2 metros de altura para registrar a historiografia da Inquisição, cuja atuação engloba países como o Brasil e o Peru. “Estavam com sede em Portugal, mas tinham braços longos. Avaliando-se bem, era uma instituição com peso muito forte em cinco continentes”, afirma o historiador.

Entre os artistas cearenses com destaque na mostra, há Francisco de Almeida, que desenvolveu cinco xilogravuras com intervenções. As produções retratam o imaginário sobre os autos-de-fé, momentos das aplicações de penas. "A cruz, a espada, o ramo de oliveira... Todos esses elementos estão presentes na vida dos cristãos - novos. E o Francisco, homem místico que vê homens, anjos, demônios e santos, consegue captar tudo isso", detalha Nilton. Já Júlio Santos, mestre da foto pintura, retrata diversas figuras do movimento, como o padre Antônio Vieira. “Todo esse diálogo é necessário para que não exista xenofobia, intolerância, barreiras e fronteiras. O respeito ao outro é fundamental para que nós tenhamos na sociedade o estilo de harmonia”, arremata Nilton.

"Ler a Inquisição em Tempos de IntolerÂncia"

Quando: até 12 de novembro de 2022; de segunda a sexta-feira, das 08 às 12h e das 13 às 17h
Onde: Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (avenida da Universidade, 2854 - Benfica)

(*) Jornalista. Colunista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 18/10/22. Vida & Arte, p.3.

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