sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Crônica: “E o minuto despencou do coração das horas” ... e outros causos

E o minuto despencou do coração das horas

70 anos matrimoniados, padre e civil, e os dois passam hoje dos 90 de idade. E ainda se pegam em brigas homéricas por besteira, que nem a moçada d'agora - por pouco, mais ou nada. Na verdade, dona Menina e seu Zé sempre se conheceram se azunhando, e ainda hoje se estranham - é o peixe insosso da janta, o inevitável vizinho bonequeiro, a chuva nas coivaras, o Ferrim que empata, ganha ou perde...

Por derradeiro, a coisa tem piorado bastante. E ele é sempre o pivô da imbuança. De natureza essencialmente braba, à moda cassaco criado longe dos pais, seu Zé tem o agravante das oiças curtas, que o leva a confundir entendimentos simplórios e coicear quando dona Menina lhe tira a pagode. Tem também a inexistência de uma programação interiorana que preencha as horas vazias dele, cristão acostumado a labutar pesado desde os cueiros.

A última deles: faltou papel higiênico no azado instante em que o velho arreava o barro matinal, em apreciável propedêutica. Gritou da privada, ainda sentado:

- E agora, dona Menina? Quedê o papel pra eu me alimpar?

Para ela, melhor ocasião de vingar-se não havia:

E essa garrafa de álcool a 70% aí na pia do banheiro, tá pôde? Bote a máscara!

O papoco do termômetro

A febre de Glorita preocupava. Com o agravante de não se saber donde vinha aquela temperatura medonha. Teria sentado em calçada quente e pegou um estalecido federal? Ou o banho de açude bem cedo, mergulhando em água gelada? Quem sabe o queixal inflamado, o zumbido no ouvido direito infeccionado... Pensou-se até em desarranjo "intestinal a nível de tripa" (por conta da coalhada tomada na madrugada, escondida da mãe) o motivo da febre, fazendo a moça pedir penico naquele instante.

Enfim, alguém lembra do telefone do Dr. Osires Gusmão, homem caridoso que sem dúvida ajudaria a descobrir que diabo de febre era aquela na jovem; se ligar, ele diz ligeirinho o que é e passa um remédio que é tira e queda. A mãe de Glorita faz a ligação, tanto receosa. O medico atende e a primeira pergunta é: "Quanto ela tem de febre agora, mãe?" A resposta, pra meter medo no esculápio, não deixou dúvida acerca do real estado da filhinha amada:

- 40 graus à sombra, doutor!!!

A coragem de mamar numa onça

Aconteceu em comunidade praiana um pouco distante da cidade. Tudo porque o dono casa falou ao caseiro Gualberto (acompanhado da mulher e do filho) sobre "uns tais tsunamis", a voragem das ondas gigantes do mar que avançam por terra, destruindo o que aparece pela frente. Explicava que o fenômeno acontecera na Indonésia alguns anos atrás, pintando com cores mais fortes o desastre natural. Caseiro e família assustados com o relato devastador. Quanto mais o dono da casa bodejava, mais os nativos se horrorizavam.

E o que é pior: se aconteceu lá, pode acontecer aqui também. Tá vendo esse mar aí em frente, avançando? São sinais! São sinais!

Terminada a preleção, Gualberto, resoluto, falou pra mulher e filho:

Tenham medo não, viu? Vocês vão ver só! O bicho é feio, mas eu...

Cedinho do dia seguinte, armado de cacete e peixeira, lá encontramos o destemido caseiro pronto pra "quebrar de pau o tsunami metido besta que inventar de aparecer por aqui".

E fresque pra ver uma coisa, seu 'tisumanha'!!! Leva é facada nos vazi!

Fonte: O POVO, de 3/9/2021. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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