terça-feira, 9 de agosto de 2022

FAZ ESCURO

Por Sofia Lerche Vieira (*)

Enquanto o Brasil parece sucumbir à radicalização e ao ódio político, o país perde posições no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e retorna ao Mapa Mundial da Fome, realidade inédita no mundo. As duas situações não são mutuamente excludentes. É preciso, sim, combater as formas de autoritarismo que se aprofundam em nossa sociedade e têm "milicianização das eleições", como resumiu o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), uma ameaça possível. É urgente também enfrentar com ações concretas e sustentáveis a fome dos mais de 60 milhões de brasileiros que sofrem com insegurança alimentar.

O país sequer se refez do luto pelos cruéis assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e novos crimes reforçam a perspectiva de que a barbárie parece se instalar de vez entre nós. A lista não para de crescer: enquanto um cidadão é assassinado por suas convicções políticas em sua festa de aniversário, armas são tema de celebração de outro; uma mulher em trabalho de parto é estuprada por seu médico anestesista em um hospital público. Isto para não falar do crescente clima de ódio que aparta famílias e amigos em virtude de suas preferências ideológicas.

Sorrateira, um desconforto sem nome se apodera de nossa mente e alma, fortalecendo a impressão de que dos porões dos piores sentimentos humanos possam emergir sombras mais ameaçadoras do que seria possível imaginar. Que tempos são esses? Onde se perdeu a nossa humanidade? O que fazer quando até aqueles que praticam a solidariedade junto aos que mais sofrem, como Padre Júlio Lancellotti, são perseguidos?

Tempos difíceis e escuros os que vivemos. Na impossibilidade de dar voz à fé em dias melhores, os versos do poeta Thiago de Mello (1928-2022), falecido no início deste ano, ressoam como chamada a crer em alguma luz, apesar da escuridão. "Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar". Ou ainda, "Escondo o medo e avanço. Ainda não é o fim. É bom andar, mesmo de pernas bambas".

Precisamos reencontrar a capacidade de escuta e entendimento. Reaprender a nos darmos as mãos para recomeçar.

(*) Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uece e consultora da FGV-RJ.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 18/07/22. Opinião, p.16.

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