quarta-feira, 21 de setembro de 2022

SOBRE CRAVOS E MANGUEIRAS: à memória de José Liberal de Castro

Por Romeu Duarte (*)

Conheci-o em 1981, mal entrado na Escola de Arquitetura da UFC, quando, logo no primeiro encontro, inoculou-me o vírus do patrimônio. Ácido, crítico e mordaz, de uma cultura e de uma inteligência fascinantes, gostava de abrir cabeças, não de fazê-las. Tudo isso me passou pela memória como um raio, eriçando meus pelos, quando soube da notícia no comecinho da noite de ontem. Ele agora está ali, num esquife repleto de cravos, cujo perfume intenso me craveja a alma. Na chegada ao velório, destroçado, sou por todos tratado como se fora um filho seu. Mestre, mentor e guru de gerações de arquitetos cearenses, agora dorme o seu eterno sono. Magro como um passarinho, num severo paletó, o véu imóvel sobre a face sisuda. Choro como um menino órfão.

Os familiares e os muitos amigos se acomodam para pranteá-lo no vestíbulo do pavilhão, naquele instante transformado em câmara mortuária. "Velá-lo aqui foi a melhor decisão", disse de mim para comigo, "aqui, nesta escola, que sempre foi a sua casa". E as lembranças me atropelam, como a um pobre cachorro cego numa rua movimentada. As aulas da sua disciplina, nossa viagem a Icó, o telegrama de felicitações pela minha formatura, seu apoio quando dirigi o IAB e o IPHAN, uma longa conversa numa tarde, quando me contou sua ida ao Rio de Janeiro para trabalhar e estudar. Até as nossas brigas entraram no rol das recordações. Jovens estudantes, que nunca foram seus alunos e poderiam ser seus netos, graves e solenes. O forte olor dos cravos mistura-se ao das coroas.

Seu colega-amigo-irmão chega amparado. À beira do ataúde, diz: "Mais de 60 anos de amizade e convivência, e agora?". Meus olhos fitam os seus, os quatro marejados. Abraço-lhe e beijo-lhe a testa. "Lembra de que vocês dois ficaram até o fim do enterro do meu pai?", perguntei-lhe. Ele me sorriu e devolveu o amplexo. O pátio da Arquitetura, sempre animado, servia então, com suas muitas sombras, como espaço de acolhida ao público silente e triste que não parava de vir. Todos tinham uma boa história com ele. "Viveu uma vida longa e próspera", falou-me um colega. "Você está assistindo a "Jornada nas Estrelas" demais...", brinquei. Era também o momento de rever velhos companheiros, todos nós desolados pelas últimas perdas do nosso acervo pessoal. Muito luto.

Súbito, o vento forte de setembro, que espalha o pólen-sêmen do amor pelas árvores engravidando-as, agita com suas rajadas as centenárias mangueiras do pátio. Estas idosas mangueiras, que presenciaram os esforços dos quatro destemidos arquitetos que criaram este curso. "Que esta ventania dissemine as lições do grande professor entre as gentes e que nestas brotem valores mais humanos", pedi. Recebo no celular uma mensagem da minha filha mais velha: "Foi-se uma rainha, vai-se um rei". As lágrimas me vêm novamente, mesmo sabendo que ele recusaria a alegada realeza, apesar do orgulho que guardaria no coração pelo elogio. As pessoas já conversam em rodas, preparando-se para os ritos finais. No ar, a perfumada sinfonia dos cravos e das mangueiras...

(*) Arquiteto. Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Fonte: Publicado In: O Povo, de 19/09/22. Vida & Arte, p.2.

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