Graças ao bom Deus e à boa vontade de tantas pessoas
ainda contamos com cristãos e cristãs humildes e fervorosas. É a estes
especialmente que se dirigem estas reflexões. Pessoalmente na idade avançada em
que me encontro (90 anos) ainda me lembro de meus tempos de criança quando até
estas e no próprio lar doméstico participavam da preparação para a Páscoa
durante toda a quaresma. Assim, por exemplo, os meninos não matavam
passarinhos, cumpriam mesmo sem obrigação os dias de abstinência e mais algumas
práticas aceitas por amor sob o olhar piedoso de sua mamãe. Tudo isso era
quaresma e podia-se sentir o espírito próprio dos quarenta dias que em muito
contribuíram para a boa formação cristã de famílias piedosas e dedicadas.
Por outro lado essa abstinência e jejum da quaresma não é
própria só do cristianismo. Recorde-se que entre os gregos e séculos antes de
Cristo a filosofia eleática de Zenon resumia com o nome de viver virtuoso
nestas duas palavras: Abstner et sustiner. Em português: Abstém-te
e suporta.
Em continuidade a essas reflexões vale a pena transcrever
esse longo trecho sobre o mesmo assunto do grande papa Leão Magno (séc. V).
A purificação espiritual por meio do jejum e da
misericórdia
Em todo tempo, amados filhos, a terra está repleta da
misericórdia do Senhor (Sl.32,5). A própria natureza é para todo fiel uma lição
que o ensina a louvar a Deus, pois o céu, a terra, o mar e tudo o que neles
existe proclamam a bondade e a onipotência de seu Criador; e a admirável beleza
dos elementos postos a nosso serviço requer da criatura racional uma justa ação
de graças.
O retorno, porém, desses dias que os mistérios da
salvação humana marcaram de modo mais especial e que precedem imediatamente a
festa da Páscoa, exige que nos preparemos com maior cuidado por meio de uma
purificação espiritual.
Na verdade, é próprio da solenidade pascal que a Igreja
inteira se alegre com o perdão dos pecados. Não é apenas nos que renascem pelo
santo batismo que ele se realiza, mas também naqueles que desde há muito são
contados entre os filhos adotivos.
É, sem dúvida, o banho da regeneração que nos torna
criaturas novas; mas todos têm necessidade de se renovar a cada dia para
evitarmos a ferrugem inerente à nossa condição mortal, e não há ninguém que não
deva se esforçar para progredir no caminho da perfeição; por isso, todos sem
exceção, devemos empenhar-nos, para que, no dia da redenção pessoa alguma seja
ainda encontrada nos vícios do passado.
Por conseguinte, amados filhos, aquilo que cada cristão
deve praticar em todo tempo, deve praticá-lo agora com maior zelo e piedade,
para cumprir a prescrição, que remonta aos apóstolos, de jejuar quarenta dias,
não somente reduzindo os alimentos, mas sobretudo abstendo-se do pecado.
A estes santos e razoáveis jejuns, nada virá juntar-se
com maior proveito do que as esmolas. Sob o nome de obras de misericórdia,
incluem-se muitas louváveis ações de bondade; graças a elas todos os fiéis
podem manifestar igualmente o seu sentimento, por mais diversos que sejam os
recursos de cada um.
Se verdadeiramente amamos a Deus e ao próximo, nenhum
obstáculo impedirá nossa boa vontade. Quando os anjos cantaram: Glória a Deus
nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade (Lc. 2,4), proclamavam bem-aventurado,
não só pela virtude da benevolência, mas também pelo dom da paz todo aquele
que, por amor, se compadece do sofrimento alheio.
São inúmeras as obras de misericórdia, o que permite aos
verdadeiros cristãos tomar parte na distribuição de esmolas, sejam eles ricos,
possuidores de grandes bens, ou pobres, sem muitos recursos. Apesar de nem
todos poderem ser iguais na possibilidade de dar, todos podem sê-lo na boa
vontade que manifestam.
Dom Manuel Edmilson da Cruz é bispo emérito de Limoeiro do Norte.
Fonte: O Povo, de 29/3/2015. Espiritualidade. p.9.
Nenhum comentário:
Postar um comentário