Conheci Carmina, nos meados da minha adolescência, nos tempos colegiais, época em que os hormônios androgênios vicejavam e minha face era fincada por “cravos” e “espinhas”, ameaçando deixar depressões e sulcos no rosto.
Nossos primeiros “encontros” foram na casa de um amigo, freqüentador da mesma paróquia e do mesmo colégio, que, certamente por nutrir alguma paixão por Carmina, mas sempre alegando razões maternas, que a tinha sob a sua devida guarda, raramente franqueava a saída dela até a minha casa, onde eu poderia dispor de alguns momentos de maior intimidade.
Confesso que foi um “caso” de amor à primeira vista, tendo sido dominado pelo desejo absoluto da sua posse permanente, algo bastante difícil para um “despossuído” de bens materiais, vivendo exclusivamente às expensas paternas, provedoras da subsistência mínima, sem direito à “mesada”.
Acolher em meu lar essa “tedesca profana”, dadas às minhas limitações financeiras e às dificuldades logísticas do final dos anos sessenta do século vencido, compunha um entrave hercúleo, de maneira que somente quando estava prestes a findar meu curso médico, quase dez anos após o nosso contato inicial, pude possuí-la, ainda que fosse uma réplica daquela imagem primeira.
Carmina esteve “espiritualmente” comigo em momentos muito especiais de minha existência: na solenidade de nossa “Aula da Saudade”, em dezembro de 1977, ocasião em que prestamos o Juramento de Hipócrates, cumprindo uma milenar tradição, apresentei-a a meus colegas formandos, porém poucos deram-lhe a devida atenção; também na comemoração do Jubileu de Prata de nossa formatura, quando recebi a incumbência de fazer a saudação aos médicos da Turma José Carlos Ribeiro, reapresentei-a publicamente, mas havia vagas e esparsas lembranças entre alguns dos companheiros, como indicativo do conhecimento prévio.
O “Fortuna Imperatrix Mundi” retrata, com propriedade, o conceito antigo da roda-da-fortuna, emoldurado em um “moto perpetuo”, aportando, alternadamente, sorte e azar, que muito bem assinala o nosso platônico relacionamento desde os primórdios, marcado por sucessivos desencontros físicos, reportados a seguir.
Em maio de 1987, quando da primeira viagem à Europa, ao passar por Colônia, descobri que “Carmina” terminara a sua temporada de apresentações na semana precedente à minha chegada; em novembro de 1991, mesmo sobrecarregado pelos encargos de Secretário Geral do XII Congresso Brasileiro de Cancerologia, que ora transcorria em Fortaleza, empolguei-me com a apresentação que faria na televisão brasileira, sob a regência de Seiji Ozawa, e tratei de gravar, para dispor da cópia com a sua encenação plena, experiência mal sucedida porque esquecera de ajustar o canal de gravação, sobrando-me na fita a entrevista do admirável Chico Buarque sobre o seu livro “Estorvo”; em junho de 1997, quando cheguei à Ribeirão Preto, para participar do Fórum de Coordenadores de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, descobri que, na véspera, “Carmina”, sob a batuta de Benito Juarez, fizera única apresentação nessa cidade.
Carmina também trouxe-me dividendos amorosos, pois ao confidenciar a um analista de sistemas do Instituto Nacional do Câncer, que fora almoçar em minha residência, a minha fidelidade a ela, de mais de vinte anos, a ausculta indevida da nossa empregada doméstica, aliás um pouco boquirrota, granjeou-me o regozijo de minha mulher por saber que tinha um marido fiel.
É bem verdade que sou um ente contemporâneo, nascido há cinqüenta anos, enquanto “Carmina” é do medievo, “gerada” por volta de 1300, mas somente secularizada no limiar do século XIX e convertida na obra prima de Carl Orff, estreada em Frankfurt em 1937; contudo, o descompasso cronológico entre nós não configura um impeditivo para a minha saudável e duradoura adoração por ela, e espero que seus plangentes acordes iniciais sejam entoados quando me for permitido ver a face do Pai.
Carmina Burana significa Canções de Benediktbeurn, tendo sido oriunda de um rolo de pergaminho, com cerca de duzentos poemas e canções medievais, encontrado na biblioteca da antiga Abadia de Benediktbeurn, na Alta Baviera.
* Publicado in: Diário do Nordeste. Caderno Cultura, 25 de janeiro de 2004. p. 3
A descoberta da Lua pelos brasileiros
Há 18 minutos
3 comentários:
Digno de estar em um dos seus livros. E caso esteja, diga em qual. E se não ainda, não o deixe de fazê-lo pois é um texto para qualquer tempo. Excelente.
Carmina era o intangível. Depois de tê-la e deleitar-se aos encantos dela ainda há o que resgatar na ânsia de compreender a essência dessa "paixão"...
Quando o senhor falou em Carmina, foi da peça que lembrei, mas deixei para matar a curiosidade lendo seu texto. Excelente! Abs, Isabelle Barros.
Postar um comentário