sexta-feira, 10 de abril de 2009

EMBALOS NAS CANÇÕES MATERNAS

Desde a mais tenra idade, a música tem me encantado e produzido um efeito maior do que um mero deleite. Recordo bem da minha infância e da salutar prática de minha mãe, Elda Gurgel, a me embalar na rede, até que me entregasse nos braços de Morfeu, entoando com sua agradável e afinada voz belas canções.
Por uma medida de economia de escala, ante à numerosa prole, muitas vezes, ela deitava-se numa rede, disposta ao centro do quarto, e se balançava com quatro a cinco filhos, dobrando, um a um, a vigília que nos mantinha acesos.
Músicas do cancioneiro popular brasileiro e do folclore nacional, bem como versões de boleros, tangos e canções francesas e norte-americanas, faziam parte de um amplo e eclético repertório materno, que nos apascentava e, então, nos conduzia à mansidão dos inocentes, sendo velados por Hipnos, a nos encobrir com seu manto diáfano, transpondo-nos a um mundo de sonhos e devaneios, e nos trazendo aconchego e repouso no despertar do dia seguinte.
O repertório materno era bastante variado, incluindo clássicos popularizados, a exemplo de Ave Maria, de Gounod, Sonata ao Luar, de Schubert, e Sonho de Amor, de Liszt, até hinos ufanistas nacionais (e.g. Hino da Independência, Hino da Bandeira) e estrangeiros, representados por “Marselhesa” e “God Blesses America”.
Sem dúvidas, meus irmãos e eu, fomos afortunados por contar na infância com essa forma de ninar, ao balanço da rede, do prá lá e prá cá, e embalados ao canto de uma mãe, rompendo o silêncio da noite e trazendo esperanças de um sono tranqüilo a seus filhos, mesmo tendo de ouvir “O boi da cara preta” a nos ameaçar por ter medo de careta.
Tal prática, certamente comum nas famílias prolíficas da classe média de Fortaleza, por volta de 1960, desapareceu com a introdução do televisor nas facilidades domésticas, onde a rede presente não é a de dormir, mas a de televisão, e a chegada de outros equipamentos eletrônicos, colocados nos quartos de nossos filhos, que substituiu a relação física entre pais e filhos, por algo inteiramente artificial.
Afora isso, outros fatores contribuíram para essa mudança de comportamento social, exemplificados pela: redução do tamanho da prole, dupla jornada de trabalho materno, moradia em apartamentos, que restringem a privacidade familiar, e interação extra-familiar de nossas crianças.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico e economista em Fortaleza

* Publicado in: Jornal O Povo. Fortaleza, 14 de maio de 2006. Jornal do Leitor. p.3.

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