Cartaz convoca jogadores de futebol a se alistarem no
"Batalhão do Futebol"
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Do UOL, em São Paulo
Cem anos depois de seu início, ainda é difícil entender o
que foi a Primeira Guerra Mundial. Você pode pensar nas trincheiras lotadas, no
aspecto lunar do terreno entre elas, nos ratos, insetos, excrementos e umidade,
na chuva, no frio glacial, na proliferação de doenças de todos os tipos e na
ausência de antibióticos. Você pode pensar que a estratégia dos comandantes de
todos os exércitos envolvidos era esgotar as forças do lado oposto, o que
significava basicamente desenvolver formas eficazes de matar pessoas.
Você pode pensar nos gases venenosos espalhados pelo ar,
nos ataques aéreos sem hora para eclodir, no lançamento de bombas cada vez mais
letais e na impossibilidade de tratar os feridos ou mesmo de enterrar a maioria
dos mortos. Você pode pensar em números: 16 milhões de cadáveres, 20 milhões de
feridos, 6 milhões de corpos jamais encontrados.
Mas você pode pensar também no London Irish Rifles, um
batalhão de irlandeses formado por jogadores de futebol. No meio de um ataque
ao exército alemão, os soldados resolveram chutar uma bola de couro em direção
ao inimigo.
Foi na Batalha de Loos, na França, em 1915, o segundo ano
da guerra. Os jogadores/soldados fizeram chegar às trincheiras seis bolas de
couro e combinaram levá-las intactas ao terreno alemão. Os superiores souberam
do plano e não o autorizaram. Cinco bolas foram encontradas e destruídas. Mas o
soldado Frank Edwards escondeu a última embaixo da farda e a inflou momentos
antes do ataque.
Quando o apito soou indicando o início do assalto,
Edwards escalou a parede da trincheira e chutou a bola contra os alemães. Ela
ficou presa em uma cerca de arame farpado ali perto. O soldado conseguiu
recuperá-la e a conduziu por cerca de 20 metros em direção ao exército
germânico até ser abatido pela artilharia.
A bola continuou quicando no campo de batalha, enquanto o
massacre acontecia em volta dela. Nos registros do regimento, consta que homens
foram vistos trocando passe até sumirem no meio de nuvens de fumaça além das
linhas inimigas. "London Irish, para a bola!", eles gritavam conforme
avançavam.
Eles acreditavam que jogar bola em uma das guerras mais
sangrentas da humanidade era exibir bravura.
O futebol em todo lugar
Não foi um ato isolado. O futebol estava por toda parte
na Primeira Guerra Mundial. Está nas fotos posadas de soldados e oficiais ao
lado de canhões e bolas de couro, alguns usando rudimentares máscaras antigás
que os assemelhavam a personagens de filmes de ficção científica. Está nos
cartazes de guerra convocando especificamente jogadores a se alistarem no
exército, já que eles estavam entre os homens mais robustos e fisicamente aptos
a uma empreitada como aquelas.
Está no famoso
"Batalhão do Futebol", um regimento britânico formado principalmente
por atletas, juízes e torcedores, que
tiveram a chance de lutar (e morrer) lado a lado. Mais de mil membros desse
batalhão pereceram durante a guerra.
Está na poesia de Siegfried Sassoon, um escritor que
serviu como oficial do exército britânico e lia notícias de futebol para
acalmar seus homens antes de um ataque. Está na saudação feita pelo soldado
alemão que propôs a famosa Trégua de Natal de 1914, quando os dois lados
interromperam as hostilidades para trocar presente e bater bola entre as
trincheiras. As primeiras palavras ditas pelo alemão aos ingleses foram um
comentário sobre o Tottenham e o Arsenal.
Se havia alguma coisa que ligava grande parte daqueles
homens além da necessidade mútua de se matarem era o fato de que eles eram
apaixonados por futebol, um esporte que estava no auge da popularidade na
Europa.
E transformar a guerra em um jogo era uma forma de
suportá-la. Em um episódio que ficou conhecido como "O Ataque do
Futebol", o capitão Wilfred Nevill propôs um desafio a quatro de seus
fuzileiros: o primeiro que conseguisse levar uma bola de futebol até as linhas
inimigas, ganharia um prêmio. O próprio Nevill iniciou o ataque chutando a sua
bola em direção ao exército rival. Foi imediatamente morto pela artilharia. Um
sobrevivente relatou depois:
"Quando o tiroteio acabou, eu vi um fuzileiro subir
no parapeito em direção ao terreno entre as trincheiras, incentivando os outros
a fazerem o mesmo. Enquanto fazia isso, ele chutou uma bola. A bola subiu e
cruzou a linha alemã. Isso pareceu um sinal para avançar."
Chutar uma bola no meio das batalhas "se tornou
rapidamente um ato que mostrava status e bravura", de acordo com Paul
Fussell, autor do livro The Great War and Modern Memory ("A Grande
Guerra e a memória moderna", sem edição no Brasil).
O fim da inocência
"Toda guerra aniquila a inocência, mas nenhuma
guerra mais do que essa", escreveu o jornalista Brian Phillips sobre o
conflito que começou em 1914. No ano seguinte, ainda existia inocência no meio
da barbárie.
Em 24 de abril de 1915, 50 mil torcedores estavam em um
estádio de Manchester, na Inglaterra, para ver a final da Copa da Liga entre
Chelsea e Sheffield United. Dois dias antes, havia começado a batalha de Ypres,
na Bélgica, uma das mais sangrentas da Primeira Guerra. Milhares de soldados
franceses morreram logo nos primeiros minutos do conflito ao inalar um gás
venenoso dispersado no ar pelos alemães – alemães também morreram porque o
vento soprava para todos os lados.
Bola de couro usada na 1ª Guerra foi encontrada em 2011
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A batalha ainda estava acontecendo quando Chelsea e Sheffield
entraram em campo. Nas fotos da partida, é possível ver militares em muletas,
militarem com faixas médicas na cabeça, militares que tiraram férias da
barbárie da guerra para ver futebol.
Depois disso, intelectuais nacionalistas começaram uma
campanha para interromper o calendário esportivo e forçar atletas a se
alistarem no exército. Era um absurdo, diziam eles, que esportistas
continuassem suas vidas, enquanto milhares de pessoas morriam no exterior para
defender a nação. "Nunca a mesma inocência de novo", escreveu o poeta
Philip Larkin, sobre os eventos esportivos no meio do conflito.
Um século e incontáveis guerras depois, continuamos
falando de futebol em termos bélicos porque a metáfora segundo a qual uma
partida é uma batalha ainda faz sentido. O jogador que marca mais gols tem a artilharia
de um torneio. Ele também pode ser um matador e um Gladiador.
Uma equipe que é goleada sai de campo massacrada. Um chute pode ser um
tiro, como um tiro de meta ou um tiro livre. Já um chute muito forte é
uma bomba. Um time que evita o rebaixamento no fim do campeonato é um
time de guerreiros. O técnico é chamado de comandante e o
líder do time é o capitão.
Cem anos depois ainda é difícil entender o que foi a
Primeira Guerra Mundial, mas parece que a guerra nunca saiu de nós.
Fonte: UOL, Notícias,
em 24/08/2014. Divulgação/Leather
Conservation Centre.
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