Com uma carta
emocionada, os filhos de Audifax se despediram do pai. O Vida & Arte
reproduz trechos do texto como homenagem. (*)
Dizem os antigos, em
sua sabedoria, que o sofrimento e a impermanência são as marcas da vida do
homem sobre a terra. Para vencer o sofrimento, o homem inventa prazeres e
alegrias passageiras, como se pudesse afirmar a vida em uma fantasia constante.
Para vencer a impermanência, o homem constrói pirâmides e títulos para que
guardem e imortalizem a sua memória, como se fosse possível parar a marcha
incessante do tempo.
Essas filosofias falam
de um homem abstrato, ainda não nomeado em sua unicidade e particularidade
intransferível. Hoje aqui, não falamos de um homem abstrato, mas de uma pessoa
real, concreta, tangível: o nosso pai Audifax Rios. O sofrimento da vida, de
forma mais generosa e inspirada, nosso pai transformou em arte. As suas
pinturas tinham, muitas vezes, cores fortes e intensas, como se dos seus
quadros a vida brotasse em toda a sua energia e esplendor. De outras vezes, os
seus desenhos tinham traços grossos e de contrastes marcantes, como a
xilogravura recortada na umburana bruta, para melhor simbolizar os sofrimentos e
alegrias do seu povo.
Muito teríamos que
falar do nosso pai como artista plástico, escritor, jornalista, editor,
militante ativo de estéticas e éticas transformadoras, com grande importância
artística na invenção de uma alma cearense e na afirmação da construção do
nosso processo identitário. Aqui queremos falar da pessoa que amamos, do nosso
pai querido, sempre tão amoroso e solidário. Se o homem nasce para se realizar
através do amor, da amizade e da arte, podemos dizer que o nosso pai, nessa
vida, realizou-se. A morte é apenas a completude dessa realização,
imortalizando-o em nossas memórias e em nossos corações. Diante
da impermanência de todas as coisas, ele afirmou a eternidade do amor.
Um amigo da nossa
família contou-nos que, ao saber da morte do nosso pai, foi para casa, em
estado de pesar e aflição. No prédio onde morava, com espantosa sincronicidade,
encontrou um pequeno pássaro, que entrara por uma fresta, encolhido em recanto
do corredor. Ele aproximou-se, o pássaro pousou no seu dedo, e ele pode levá-lo
até a janela. Diante da amplidão, o pássaro ganhou os céus e voou até sumir
entre as nuvens. Seria este acontecimento uma abençoada metáfora para acalentar
os nossos corações inconsoláveis. Seria a vida este corredor estreito, e voo do
pássaro a libertação do espírito que novamente reencontra o Amor de Deus, em
sua infinita misericórdia? Da vida o que fica? O que fica é o tesouro que a
traça não rói e a ferrugem não devora... O que fica é o intangível, o
imaterial, o que se esconde no fundo da alma e podemos chamar de amor,
solidariedade, amizade, beleza, gratidão...
O sertão é o território
mítico e sagrado na vida e na arte do nosso pai. Na sua última crônica,
publicada no dia 24 de abril, no jornal O Povo, ele escreveu comovido sobre a
sua terra. Essa última crônica tinha o dom profético de uma carta de despedida.
Não foi por coincidência que, para partir desse mundo, o nosso pai escolheu
Santana do Acaraú, a sua querida Licânia - o mesmo lugar que o viu nascer. Em
tudo a marca do sertão profundo e da infância mágica que ecoou em forma de arte
e cores e poesias, até o último momento da sua vida. Morreu perto dos
sentimentos mais profundos e dos mitos fundadores da sua vida. Assim, ele
fechou o ciclo da vida, reencontrou a dimensão cósmica da sua reunião com Deus,
na terra da bem aventurança. Morreu nos vastos prados do sertão sagrado.
Adeus, pai.
(*) Carta lida como despedida pelos filhos
de Audifax.
Publicada In: O
Povo, Vida & Arte, de 1º/05/2015.
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