Pedro
Henrique Saraiva Leão (*)
Aconteceu
há uns 36 anos na Assistência Municipal, ou Instituto José Frota, hoje, Frotão.
Àquela época, quaisquer doenças ou desconfortos, simples ou graves, agudos ou
crônicos exacerbados levavam para aquele pronto–socorro doentes de Fortaleza, e
até de estados vizinhos. Os plantões tornavam-se assim verdadeiros cursos de
medicina de urgência, ou, quando menos prementes, de cuidados emergenciais.
Sobressaiam os traumatismos em geral, as facadas, as lesões por armas de fogo,
os vômitos c/s dores abdominais por colecistite (inflamação de vesícula
biliar), pancreatite, e apendicite, esta ilustrando 50% dos casos do chamado
abdome agudo. As obstruções intestinais de natureza variada. O edema súbito dos
pulmões, a insuficiência coronariana abrupta (infarto ou enfarte do miocárdio),
os acidentes encefálicos, como o vascular cerebral, as crises instantes
(subitâneas) de asma, anginas do peito (dor torácica precordial e do ombro
esquerdo) ou orofaringeanas.
Lá
também registravam-se os abscessos, as histerias, estas neuroses com
manifestações corporais sem causas aparentes, equivalentes ao chamado
pitiatismo, ou pit. São de pronta resolução com aspiração de amoníaco, ou “flor
de maçã” como se diz no jargão dos médicos socorristas. Eventualmente lá
compareciam casos de tétano, “dordolho”, e até “Tunga penetrans”, ou “bicho – de – pé” (na minha experiência nesses
anos lembro-me bem destes exemplos).
Transcorria
tranquilo aquele expediente noturno. Chovia. Pelas 3h30 da madrugada o
cirurgião foi acordado do seu leve cochilo para atender a uma moreninha trazida
pela ambulância. Desfalecida, suando em profusão, extremamente pálida,
apresentava pressão arterial diastólica (a mínima) de 4mmHg. A anamnese
(história clínica) recente sugeria prenhez ectópica rota, i.e., gravidez
desenvolvendo-se fora do útero (numa trompa), portanto rompida, sangrando
profusamente.
A
punção do fundo de saco reto – vaginal corroborou o diagnóstico. Impunha-se a
laparotomia (abertura cirúrgica da cavidade abdominal) imediata. Acordando, o
anestesista contraindicou a operação alegando a baixa pressão arterial.
Enquanto o sangue jorrava no abdome da moribunda, ao telefone instamos com os
dois chefes do bocejante anestesista, os quais contudo não conseguiram
demove-lo de tão temerária hesitação. Resolvi então operar com anestesia local
(sinalgan). Durante a aspiração do copioso sangramento abdominal, subitamente
faltou energia elétrica. Contudo, sob a luz de duas lanternas, conseguimos
descobrir a artéria culpada. Deus ainda não queria aquela paciente de volta.
Pinçado e ligado aquele vaso, fechamos a doente, concluindo a operação.
Anos
depois, umas das copeiras da Santa Casa da Misericórdia me indagou o nome e
recordamos aquele incidente. Era a mesma moreninha daquela noite de chuva e
sangue. Quanto ao anestesista, há muito tornara-se-me ultra disponível,
solícito, após termos lhe operado da fimose (postectomia, ou circuncisão),
assim preparando seu enxoval de noivo. Ao que parece, curei-o também da “paresse”,
como dizem os franceses!
(*) Médico,
ex-presidente e atual secretário geral da Academia Cearense de Letras.
Fonte: O Povo,
Opinião, de 29/4/2015. p.8.
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