Tenho sido favorável às decisões do Governo do Ceará. O Centro de Convenções me sugere um excelente investimento para a cidade, além de estar bem localizado, e de ser um projeto de arquitetura e paisagismo belíssimo. Até mesmo o polemizado aquário na Praia de Iracema, onde nasci, conta com a minha simpatia. Como nosso maior urbanista, Lucio Costa, compreendo o ponto de vista dos que entendem que a cidade prescinde de símbolos, e seja despojada de qualquer vislumbre de grandeza, em favor de uma plenitude administrativa. Mas, como ele, acredito que, "imanente ou transcendente, há uma intrínseca grandeza no homem e na sua obra, ainda quando aparente a sua negação". A ideia do aquário é perfeita para uma cidade como Fortaleza, que tem no mar uma de suas marcas mais fortes e bonitas. O mar é o monumento nato de Fortaleza. A orla é a maior riqueza do Ceará, pertence ao seu povo, e deve ser cuidada com minúcia e rigor, dentro de concepções inovadoras, ecológicas e sustentáveis.
Claro, os governos precisam cumprir as metas sociais e cuidar de Fortaleza, tanto com a presença universal da administração, como em campanhas educativas para se criar espírito público e desvelo pela cidade, por parte de seus moradores. Mas é correto não esquecer a valorização de Fortaleza frente aos seus habitantes e a sua situação no mapa urbano mundial. O desafio da transformação tem preço, ela é arriscada, precisa ser feita com a maior sensibilidade, mas a sua alternativa é a desesperança, o isolamento e a estagnação. Vemos a experiência de Bilbao, pequena cidade espanhola que tomou expressão internacional a partir da construção de um museu em arquitetura ousada. Vemos o caso de Niterói, com a edificação de um pequenino museu sobre pedra, na orla, de extraordinária presença na cidade, que se tornou mais atraente e valiosa. E, bem pertinho, vemos a proposta amena e benéfica do Parque do Cocó. É até mesmo uma questão de autoestima, tema dos mais candentes por aqui.
Também concordo com a criação de um estaleiro, fonte de riquezas, de trabalho, e outros bens econômicos. Mas a localização do estaleiro em plena orla urbana, num dos pontos mais belos, é incompreensível. Parece-me a mesma atitude de alguém que possui um fabuloso apartamento, com vista para o mar, e resolve instalar a área de serviços na varanda. Basta um passeio pela orla de Santos, ou de Vitória, para constatarmos a destruição de uma possibilidade racional, humana, o desprezo pelo que vale e significa a paisagem na alma de uma cidade. Não apenas a paisagem, mas o preço da degradação urbana que se forma em torno dessas indústrias. Coisas do passado. Nenhuma administração pode se permitir mais esses equívocos. Basta passear pela orla do Rio, pela Barra, pela Lagoa, para ver o oposto, calçadas, jardins, playgrounds, bosques, quiosques, ciclovias... Barcelona, Londres, Paris, Sidney, Manaus, Belém, Boa Vista...
O estaleiro na orla urbana renega o próprio aquário construído para a ocupação de área nobre, em favor da cidade e da população, do mesmo modo como foi feito o belíssimo Dragão do Mar, que, sozinho, numa ilha entre abandonos, perde sua simbologia e força. O grande símbolo dessa ocupação das áreas nobres pelo interesse elevado, pela população, é uma guinada contra a utilização desses espaços como zona de deleite subalterno ou de violência consentida. A cidade, como diz Lucio Costa, é um ato deliberado de posse, de um gesto desbravador. O que se poderia esperar era o contrário, a retirada do porto de Mucuripe para local mais adequado, com todos os seus guindastes, contêineres, caminhões, óleo e fumaça, e que a orla prosseguisse em sua função.
Ali a aptidão é, juntamente com o Titanzinho, ser uma área de beleza e valores naturais, como é o aterro do Flamengo no Rio, artisticamente arborizada, com quadras para atividades esportivas, de brincadeiras infantis, celeiro de tartarugas e golfinhos, praia para pescaria e surfe, calçadas para passeios, lazer e reconforto para os moradores de Serviluz, escolas esportivas, o que está ditado pela sua ocupação espontânea.
Todo esse esforço, pago pela população e empreendido pelo poder público, deve tornar Fortaleza uma cidade moderna e corajosa, não mais uma capital de província, nem uma serva do interesse econômico, mas a tradução da ideia de prestígio e dignidade, associada à noção de coisa pública, acompanhando as preocupações do nosso tempo e as necessidades e sonhos de nosso povo.
Ana Miranda
* Crônica publicada In: O Povo, de 05/02/10. Caderno Vida & Arte. p.6.
Nota do Blog: Texto lúcido, construído com sensibilidade e racionalidade, e digno de ser reproduzido em outros meios de divulgação. A comparação ectópica, usada por Ana Miranda, que fundamenta o título da crônica-protesto, foi divinal.
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