sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Crônica: “Quando todo cristão apertado afrouxa” ... e outros causos

Quando todo cristão apertado afrouxa

A vida é curso avançado de aprimoramento, através do esforço e da luta. E nós ali, no Terminal da Parangaba, pela 11 da manhã - solzão de queimar paciências, meros expectadores da fulerage transcendental. Quem? Eu e o amigo-filósofo-e-homem-de-bem Francisco Lopes. Aguardávamos o Siqueira/Vila Manuel Sátiro. Filas e mais filas. Emaranhado de bicho de orelha chegando a partindo pra tudo que é canto da cidade.

Dissecávamos, epistemológicos, o limite entre o conhecimento humano e a sabença dum bacurim quando, de repente, aquele homem socado, metido num terno preto, calçando mocassim, Bíblia debaixo do braço, cruza o Terminal com mais de mil, o rabo era um rei. Entreolhamo-nos e um "diabeisso?" conjunto irrompe repentino. Sem-número de questionamentos toma-nos de assalto.

Afinal, por que o homem, jeitão de pastor protestante, Bíblia no braço, corria em tão desabalada carreira? Comecei as divagações sobre o passageiro corredor fortuito.

- Tá perseguindo algum meliante, e golpeá-lo com chibatadas de fé!

E Francisco, socrático, respondia de lá.

- Não teria sido ele furtado por um ladrão de Bíblia, que empreendera fuga em direção a Maranguape?

- Talvez... Quiçá estivesse atrasado pro culto!

- Provável. Sabe lá, quisesse chegar adiantado pra visita do ministro.

- Será? Não estaria, alinhado daquele jeito, indo dar sermão nalgum irmão sem futuro?

- Bem, se carregava lápis no bolso do paletó, tinha urgência em modificar um versículo.

- Não, acho que o terno era só de agá: o homem ia ter com o Salvador...

Calamos por instantes, à espera de o tal do cidadão de terno preto, Bíblia debaixo do braço, retornar, após atravessar o Terminal em disparada. Sem argumentos mais, quedamo-nos - crentes - que só podia ser aquilo, pelas palavras de Francisco:

- Corria em busca do banheiro! Senão, pecaminoso, borraria as calças no Terminal!

Outro homem saiu do WC. Feliz, mesmo sabendo que a felicidade não é desse mundo.

Tempo, tempo, tempo, tempo...

O amigo Francisco citado conta que foi dar esmola pequena e o pedinte, prenunciando o tiquinho de dinheiro a receber, disse não aceitar "mixaria, e não insista!". Reclamação aceita, sentou-se, Francisco, e de pronto rascunhou, consultor que é, o 'Manual do Moderno Mendigo'. Precede às regras o seguinte caput, já sintetizado: "A globalização não poderá esquecer que somos seu substrato mais ingente. Sem nós, os bestas, o que seria dos sabidos? Portanto, atenção ao que postulamos, nesse enquadramento de mão-de-obra que chamamos 'necessário bem dinâmico'. Somos a possibilidade de seu mais caridoso exercício fraterno".

Às regras - apenas 7 das 753, dissecadas por Francisco:

1ª - Nunca chore. Você tá pedindo esmola, e não queixando-se de dor de barriga;

2ª - Fale ao menos três idiomas (cearensês, então, é língua demais comercial);

3ª - Não use camiseta, pra não ser confundido com malandro;

4ª - Nunca peça "pelo amor de Deus", o doador pode ser ateu;

5ª - Feder a cachaça em serviço é erro primário;

6ª - Crie suas mídias sociais, anuncie nos classificados, trabalhe seu marketing pessoal;

7ª - Trate de pós-graduar-se em Economia, e abra conta conjunta na Caixa.

Fonte: O POVO, de 16/07/2023. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog