Por Sofia Herrero, jornalista de O Povo
"O teatro se concretiza no ato e no
tempo", afirma o ator Ricardo Guilherme, em entrevista ao O POVO, na semana em que comemora seus 70 anos.
Destas sete décadas, com 55 anos dedicados às artes, a história de Guilherme se
confunde com a do teatro cearense e com a de inúmeros palcos em que o
dramaturgo encenou.
Aos 14 anos, subiu ao tablado do Teatro São
José para estrear "O Mártir do Gólgota", espetáculo interpretado na Semana Santa, que retrata a
Paixão de Cristo e a crucificação de Jesus.
Hoje, 55 anos depois, o historiador observa
as paredes do anfiteatro no qual estreou, enquanto planeja o lançamento do
livro Teatro São José, ficção e alguma história", que biografa o local. A
obra integra a Coleção Pajeú, realizada pela Coordenadoria de Patrimônio
Histórico e Cultural (CPHC), mas, para o ator, inaugura também o rol de
celebrações de seus 70 anos, celebrados neste domingo,
Na quinta-feira, 18, as festividades foram
abertas na Teatraula "No Ato", ministrada no Teatro Morro do Ouro, com foco nos alunos do
Curso Princípios Básicos de Teatro (CPBT) do Theatro José de Alencar. "Se trata de uma
aula-espetáculo que combina diversos campos do saber e da expressão: história,
ficção, depoimento, reflexão. É como uma espécie de conferência teatralizada de
um professor ator", explica.
O evento mostra a conexão de Ricardo com a
nova geração de jovens que experimentam as artes cênicas. Aposentado pelo curso
de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Ceará (UFC), mas de
espírito rejuvenescente, ele segue orientando diversos alunos em seus trabalhos
de conclusão, pelo simples prazer de pensar o teatro.
Ele ingressou como professor na UFC, no
curso de Arte Dramática, em 1979, e foi um dos proponentes do anteprojeto da
Licenciatura em Teatro da instituição. Além da UFC, foi reconhecido como
Notório Saber em cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e da Universidade Nacional de Brasília (UnB).
Na UFC, a trajetória de Ricardo se
materializa no Acervo Doc. Teatro Ricardo Guilherme. Composto por mais de
13 mil itens de documentos arquivísticos e bibliográficos reunidos ao longo de
seus 50 anos de carreira nas artes, a coleção de fotografias, textos
dramatúrgicos e livros foi doada por ele à instituição, no ano de 2010.
"Eu já doei 60% do meu acervo, falta 40%. Existe um apego, não
tenho um desprendimento e, por isso, fui doando de pouco em pouco nesses 15
anos. Mas este ano faz parte das comemorações me desprender de todo o restante
e doar para os meus alunos", diz.
Sempre vinculado ao ensino e à pesquisa, Ricardo
também foi a primeira voz a ser transmitida pela TV Educativa (TVE), que anos
mais tarde viraria a TV Ceará do canal 5. Com o propósito da educomunicação, a
TVE proporcionou a Ricardo Guilherme, de 1974 a 1992, um espaço de criação de
programas e novelas integrado ao currículo escolar do Ceará.
"Era um canal feito para educação pública e foi criado para poder
chegar a diversos lugares que os professores não chegavam, nos rincões do
sertão. Criamos, inclusive, um gênero pedagógico, a aula integrada, que era uma
forma de integrar os conteúdos das matérias e contextualizá-los no sentido prático
e no aprendizado", relata o jornalista, antevendo o papel que a teleducação
teria na modernidade.
Na TV, contudo, sua história começou um
pouco antes, junto com a disseminação do sistema eletrônico de transmissão e
recepção de imagens no Estado. No dia 26 de novembro de 1973, o primeiro
programa em cores exibido pela TV no Ceará, intitulado "O Som, A Luz, as
Cores e os Muitos Amores de Fortaleza", foi transmitido. Nele, Ricardo interpretava poemas sobre a
capital cearense, ao lado de Ivete Pereira e Cleide Holanda.
Ao longo dos anos, a bagagem acumulada em
cargos de direção, sonoplastia e produção culminou na criação do programa
"Diálogos", em 2007. Há 16
anos no ar, na atração, os entrevistados levam sete objetos que compõem sua
história pessoal e que devem nortear a conversa.
"Não considero que seja um programa de entrevista. É um diálogo,
em que, ao invés de perguntas, as pautas surgem a partir do que é levado pelo
entrevistado. O diálogo não tem hierarquia, é horizontal e vai caminhando de
acordo com a interpenetração dos temas. É um programa para filosofar sobre
questões atemporais e fazer uma espécie de cartografia do pensamento daquela
pessoa que está ali", conta.
A assinatura de um dos patrimônios da TV
cearense continua presente todas as sextas-feiras, às 22 horas, e com reprises
aos sábados, às 18 horas. Apesar de ser frequentemente associado à TV e ao
teatro, aos 70 anos, Ricardo celebra uma vida partilhada pela palavra, através
de suas dramaturgias, contos e crônicas.
Como presente, sua contribuição para a literatura
cearense foi referendada em abril de 2025, quando tomou posse da cadeira 33 na Academia Cearense de
Letras
(ACL), que
tem o autor cearense Rodolfo Teófilo como patrono.
Como um profissional multifacetado, que
registrou a história da cidade em personagens, imagens e escritos, Ricardo
trabalhou nos bastidores do programa "Porque hoje é sábado", que, com
a apresentação de Gonzaga Vasconcelos, anunciava os primórdios do que viria a
ser o Pessoal do Ceará.
"Era 1969 e eu era aquele cara que levava microfone, mandava
prancheta para assinar os cachês. Vi, de certa forma, o nascimento de Fagner,
Ednardo, Belchior, Téti, Rodger Rogério e de tantos outros, e lembro-me de
músicas que nunca foram gravadas. Eles deveriam ter mais de 20 (anos) e eu era
aquele menino brincando de ser assistente, que queria aprender", relembra.
Ao refletir sobre a passagem do tempo e as
mudanças na capital, ele pensa nos diferentes nomes que deixaram o Ceará na
tentativa de reverberar sua arte no âmbito nacional. Com a permanência em
Fortaleza, Ricardo diz ter adquirido o privilégio de olhar o mundo a partir de
um outro prisma, que posteriormente lhe permitiu representar o Brasil em
festivais.
"Me apresentei em diversos países, mas sempre que estava no Rio
ou em São Paulo, me sentia não pertencente. Realmente eu fui me tornando
fortalezense demais, atravessado pelas referências da cidade e, com o tempo,
fui desenvolvendo um senso de responsabilidade histórica com o teatro cearense.
Comecei a ter muitos lastros artísticos e talvez isso tenha me dado,
inconscientemente, um laço muito forte", finaliza.
"Um artista plástico cria uma obra e consegue contemplá-la. Já o
ator nunca vê seu espetáculo enquanto o interpreta, por isso existe uma espécie
de orfandade no teatro".
O que diz Ricardo Guilherme?
"O teatro se
concretiza no ato e no tempo"
"Todo teatro é
meu, mesmo que não seja o meu'"
"Avoquei a mim
uma responsabilidade de guardar a história do teatro cearense"
"O teatro
radical é dialético, sintético e minimalista"
"Não vejo o
teatro como arte multidisciplinar. No teatro radical, entende-se que ele é uma
arte transdisciplinar"
"Quais são os
conflitos centrais de uma peça que derivam em todo o restante?"
"Estamos à
procura do átomo conflitual, a raiz conflitiva de uma peça, a célula-máter
de uma cena"
Fonte: Publicado In: O Povo, de 21/09/25. Vida & Arte, p.4-5.