Por Miguel
Srougi *
Lamento
prever a ruína do Mais Médicos. Os nossos governantes esforçam-se para esconder
os frangalhos da ação tresloucada
Nem eu nem meus colegas brasileiros rejeitamos a ideia de mais médicos,
afinal essa é uma aspiração planetária. De acordo com a OMS (Organização
Mundial da Saúde), faltam no mundo 4,3 milhões de médicos e enfermeiras,
carência impossível de ser ignorada, pois penaliza 1 bilhão de pessoas, como
sempre aquelas que perambulam à margem da existência digna.
O que eu e a imensa maioria dos médicos brasileiros não conseguimos
aceitar é a forma como o programa Mais Médicos foi imposto à nação. Para
dissimular a indecência na saúde, nossos governantes trouxeram médicos cubanos.
Iniciativa de grande apelo aos mais distraídos, mas ilegítima, injusta,
inconsistente e empulhadora.
Iniciativa ilegítima por violar as leis e os valores da sociedade
brasileira. Como aceitar que profissionais recebam menos de 10% do que foi
anunciado; cidadãos proibidos de expressar seus sentimentos, vivendo em
cativeiros, num país onde a liberdade constitui uma conquista inegociável de
seu povo.
Injusta porque, em três anos, serão transferidos R$ 5 bilhões para Cuba,
país igualmente carente, mas que não pode ser privilegiado em detrimento dos
desvalidos do Brasil. País habitado por 60 milhões de analfabetos e por 6,5
milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, que vão para a cama sem saber se
terão o que comer no dia seguinte.
Também injusta porque, para implementar um programa tão inconsistente,
nossas autoridades demonizaram os médicos brasileiros, cuja competência e
abnegação é reconhecida dentro e fora de nossas fronteiras. O ex-ministro
Alexandre Padilha escreveu nesta Folha que os médicos brasileiros aprendiam com
os pacientes pobres nos hospitais públicos, para depois só tratar ricos.
Poucas vezes testemunhei algo tão preconceituoso, perigoso e mentiroso.
O ex-ministro, que diz ter estudado medicina, sabe que em todo o planeta existe
um contrato social não escrito: médicos aprendem em hospitais universitários e,
como retribuição, os pacientes recebem cuidados orientados ou providos por
professores, que se colocam entre os mais competentes médicos de cada país.
Iniciativa inconsistente porque os médicos cubanos, com formação dúbia,
serão incapazes de exercer qualquer ação médica efetiva em ambientes degradados
e abandonados. O que farão frente a um paciente com dor aguda no peito? Se do céu
cair um eletrocardiograma, não saberão interpretá-lo. Se por intuição
desconfiarem de um infarto, não conseguirão tratá-lo. Se alguma divindade
conseguir transportar o paciente para um centro mais desenvolvido, inexistirão
vagas nos hospitais do SUS. Atendido no setor de emergências, ele morrerá pelo
infarto e de frio, pois terá que utilizar o seu cobertor para forrar o chão
gélido, onde será despejado e não atendido.
Iniciativa empulhadora porque atribui a ruína da saúde à falta de
médicos nos rincões, quando na verdade a indecência instalou-se porque o Brasil
tem sido dirigido por governantes desonestos e de uma inépcia inabalável.
Governo cujo Ministério da Saúde promoveu, nos últimos cinco anos, o fechamento
de 286 hospitais ligados ao SUS e deixou de utilizar, em 2012, R$ 17 bilhões
dos parcos recursos a ele destinados. Valor com o qual teriam sido construídas
e equipadas 18 mil unidades básicas de saúde e com o qual menos corpos estariam
despencando diante das portas impenetráveis dos hospitais públicos.
Dirigentes coniventes com a corrupção, que segundo a ONU apoderou-se, em
2012, de R$ 200 bilhões da riqueza do Brasil, suficientes para construir 9
milhões de residências populares. Também muitos leitos hospitalares se
contabilizados os descaminhos recentes da turma do punho cerrado, do bando das
mãos lambuzadas de petróleo ou do time dos pés entortados.
Lamento prever a ruína próxima do Mais Médicos. Os cubanos já estão
migrando para centros mais prósperos e os nossos governantes, sob jugo da
marquetagem eleitoreira e com mentiras repetidas, esforçam-se para esconder os
frangalhos da ação tresloucada. Restarão no palco do horror, abandonados e
resignados, aqueles que nunca conseguirão expressar a desilusão.
*
É professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP, é pós-graduado
em urologia pela Universidade Harvard (EUA) e presidente do Conselho do
Instituto Criança é Vida.
Fonte: CFM Portal. Divulgado pela
internet em 16/05/2014.
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