Nenhum historiador, nenhum leitor informado pode conceber
a grande literatura da primeira metade do século XX sem os nomes de G. K.
Chesterton, Léon Bloy, T. S. Eliot, François Mauriac, Julien Green, Flannery
O’Connor, Georges Bernanos, Paul Claudel, Miguel de Unamuno, Gerard Manley
Hopkins, Graham Greene, Evelyn Waugh, Charles Péguy, Hugo von Hoffmansthal,
Hermann Broch, Gertrud von Le Fort, Giovanni Papini, Giuseppe Ungaretti, Henrik
Sienkiewicz, José Maria de Pereda. Que há de comum entre esses autores? São
todos escritores católicos, não só porque se assumiam publicamente como membros
da Igreja, mas porque suas obras refletem os temas e preocupações que são mais
tipicamente caros à alma católica, especialmente o pecado e a Graça. Por meio
de seus livros, esses temas entravam na cultura superior da sua época e nas
conversações pessoais de milhões de leitores tão naturalmente quanto os temas
marxistas entravam por meio de Górki ou Brecht, os esotéricos de Hermann Hesse
e W. B. Yeats, os psicanalíticos de Arthur Schnitzler, James Joyce ou Tennessee
Williams, e assim por diante.
Não há exagero em dizer que durante esse meio século a
experiência católica foi uma das principais, senão a principal força
inspiradora da criatividade literária em todo o mundo Ocidental.
Esse florescimento, incomum mesmo em épocas anteriores
mais acentuadamente cristãs, foi possível porque, alimentado pelo advento da
chamada “psicologia profunda”, o interesse crescente das classes letradas pelo
conhecimento da alma humana encontrava na disciplina tradicional do exame de
consciência e da confissão um ambiente excepcionalmente favorável.
Nada é mais indispensável ao escritor de ficção do que a
conquista daquela voz própria, pessoal no mais alto grau, que fala desde as
impressões individuais diretas, e que definha tão logo o senso da experiência
concreta é sufocado pela intromissão dos estereótipos e das “idéias gerais”.
A prática do catolicismo consiste muito menos em aderir
intelectualmente a doutrinas gerais do que em buscar, com a ajuda dessas
doutrinas, um diálogo direto entre a alma do pecador e a única fonte possível
da redenção. Todo fiel católico sabe que só perante Deus a alma alcança aquele
patamar de sinceridade perfeita que a convivência entre os homens busca em vão
imitar. Daí a vivacidade incomum, o penetrante realismo com que a experiência
católica se transmuta em representação literária da vida.
Isso explica também por que, nas décadas que se seguiram
ao Concílio Vaticano II, a grande literatura católica praticamente desapareceu,
e a mediana, que continua existindo, já não desempenha nem tem fôlego para
desempenhar nenhum papel de relevo no mundo da alta cultura.
O Concílio, como se sabe, dividiu a Igreja. De um lado,
os entusiastas do “aggiornamento”, ansiosos de conquistar a simpatia do mundo,
prostituíram-se a um bom-mocismo esquerdista que pode lhes valer algum aplauso
da mídia, mas que no reino da criação literária, onde a “guerra contra o clichê”,
como a chamou Martin Ames, é o pão de cada dia, só pode resultar na
autodestruição de todos os talentos.
O epitáfio do progressismo católico nas letras foi
“Monsignor Quixote” (1982), onde, levado pelo desejo de fazer da mediocridade
pomposa de um bispo esquerdista um símbolo de santidade autêntica, Graham
Greene, que se notabilizara nas suas obras de ficção pela veracidade
psicológica dos personagens, só provou aquilo que todo leitor de romances já
sabia: que os estereótipos da moda são a criptonita do gênio literário.
Do outro lado, os tradicionalistas, marginalizados,
perseguidos, rejeitados pela autoridade mesma que professavam obedecer,
fecharam-se num estado de espírito combatente e rancoroso, que pode inspirar
belas tiradas polêmicas, mas seca na raiz a imaginação romanesca. A mais alta
personalidade literária dessa facção ainda em atividade, o romancista canadense
Michael O’Brien, não cessa de produzir obras dignas de atenção, mas quase
sempre debilitadas por um impulso catequético demasiado ostensivo, que não
catequiza ninguém precisamente porque não atrai os leitores não católicos. O
que subsiste de literatura católica no mundo entra na categoria dos “interesses
especiais”, o que é o mesmo que dizer: não tem voz no universo da alta cultura.
Aos 92 anos, Eugenio Corti, o único grande escritor católico vivo que se
ombreia com os citados no começo deste artigo, dificilmente é lido fora dos
círculos de fiéis. Outro raro sobrevivente, Walker Percy, nascido em 1919,
falecido em 1990, pertence mais à época pré-conciliar.
É verdade que um dos ficcionistas de maior sucesso nas
últimas décadas foi um autor católico: J. R. R. Tolkien. Mas é um escritor da
primeira metade do século XX, apenas descoberto tardiamente pelo público geral.
Examinado na escala menor e local do Brasil, o processo
torna-se ainda mais visível, a queda mais vertiginosa e deprimente. Sem
mencionar pensadores e doutrinários, ficando só na área de poesia e ficção e
contando apenas os maiores, tínhamos Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira,
Jorge de Lima, Murilo Mendes, Octavio de Faria,
Se é verdade que “pelos frutos os conhecereis” e que algo
do estado de coisas na sociedade se pode apreender pelos altos e baixos da
criação literária, então é preciso dar alguma razão aos tradicionalistas e
reconhecer: o Concílio Vaticano II foi um desastre.
Publicado em 13 de janeiro de 2014.
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