quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A HISTÓRIA DO MORTO VIVO

Por Kelly Messias
Profa. do Curso de Medicina da Unifor
Mestre em Saúde Pública pela Uece.

Era um final de tarde quente, sem brilho, cheio de expectativas de visitas domiciliares em uma localidade às margens do rio Jaguaribe, distante da unidade de trabalho e, mais ainda, da sede do município, também distante...
Na ânsia de descobertas de pessoas acamadas, mais doentes do que sãs, dentro de camas e de redes tecidas perto dali, via morte se confundir com vida, olhos sem brilho e um muito de esperança. Casas escuras, sem luz natural, sem cheiro de vela...
Quando corre perto de mim um menino franzino, mulato, curioso e tentador a me chamar pra ver um morto que, ao que tudo indicava, estava vivo...
O susto que tive na hora me fez relutar a escolha profissional. E parti de casas sem cheiro de vela, adentrando noutra com cheiro de vela, calor humano, frio dos entes, tristezas opacas. Na sala miúda, o morto, assim esperava-se, muitas pessoas, a localidade inteira no impasse da decisão. Seria o diagnóstico mais difícil de minha vida, ainda mais de uma morte bem morrida!
Ao meu lado, como companheiro de sessão clinica ou de necrópsia, um agente funerário, com luvas (e eu sem), bêbado, olhos vermelhos de álcool e de um pesar profundo laboral. Ele me interroga: “tá vivo ou morto, doutora?” E eu, sem titubear, retiro-o do caixão e da sala quente, com perfume fúnebre das flores típicas de velório misturado com parafina quente.
Finalmente na cama, eu o Sr Antonio. Esforço-me bravamente nas lembranças de unidades de terapia de urgência dos passos para fechar diagnóstico de morte e assim o faço com critério. A família do morto, notadamente a pretensa viúva, cala-se e um silêncio magistral se faz ao meu redor. No entorno, hálito do agente funerário, nas bordas de minhas calcas pedaços de pétalas e no ar a terrível dúvida de possibilidade de vida ali existente ao meu lado na cama imprópria...
Sigo os passos, penso, repenso, checo tudo e a palavra final, afinal o agente me cobrara a resposta definitiva! Digo: esta morto, voltemos à sala, ao caixão, as flores e ao calor terminal da parafina quente.
O sol já esfriava quando sai dali, fria, duvidosa de minha escolha. Queria mesmo ser médica de vivos, nunca pensei em ser legista, nunca pensei de me acalacrar no leito de vida e de amor de um morto ainda quente para questionar tal situação!
E dali sai mais fria e hígida que o morto, certa de seu sepultamento na manhã seguinte!
* Publicado no Jornal Conselho, do Cremec, Nº 83, setembro/outubro de 2010. p7.

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