Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Não
valeria alcançar a idade provecta se toda a sabedoria do mundo fosse uma
tolice. Nunca poderíamos conservar os
arroubos da juventude, desde que a velhice traz consigo as suas distorções, que
dela são próprias. Pois o velho, em seu gênero, é criatura tão imperfeita quanto
o moço. Os velhos permanecem isolados, as crianças continuam morrendo de fome,
as guerras prosseguem e a fome - não somente de comida, mas de compreensão e
solidariedade - persiste.
Como
passei minha vida de médico estudando a falta de comida, causadora da
desnutrição ancestral do ser humano, sei que, apesar de todos os avanços
tecnológicos, não nos livramos da cadeia alimentar. O medo ancestral de passar
fome persiste e é aumentado pela propaganda que incute que estamos abalando a
existência do planeta. Em suma, adicionaram à nossas culpas o pecado de sermos
destruidores do Planeta.
Ao
envelhecermos, cresce em nós o medo do julgamento final, que se anuncia cada
vez mais próximo - muito embora digam por aí que nem o jovem morre, nem o velho
vive... Apesar da opinião geral de que todo idoso é trombudo, não são poucos os
que, cansados de serem maltratados,
resolvem, para sobreviver, aparentar humildade. Mas poucos são os que se
tornaram verdadeiramente humildes. Vamos a uma parábola rabínica sobre a humildade.
Quando
Jeová estava escrevendo os Mandamentos das Leis, dizem que originalmente seriam
onze e não dez. Havia um deles que comandava: Serás humilde na tua vida. Foi
quando a Humildade soube (fofocas sempre existiram, tanto na Terra como no
Céu), que ela fora elevada ao status de Mandamento. Desesperada, bateu à porta
da casa do Senhor. O frio da madrugada era intenso, mesmo no Paraíso.
Vestida
como de costume de farrapos e andrajos, ao bater na porta de Jeová ficou
congelada, mais de medo do que de frio...
Deus,
ouvindo as batidas insistentes àquelas horas ficou com receio de um assalto,
perguntou: — Quem bate? Trêmula, balbuciou a visitante: — É a Humildade,
SENHOR. Deus abriu a porta, e vendo o seu estado enregelado, ordenou, severo e
penalizado: — “Entre - vá se aquecer
junto à lareira”.
Apesar do
calor do fogo ela tremia mais do que vara verde... E gaguejando conseguiu
dizer:
—
Soube... Que o SENHOR inscreveu-me entre Vossos Mandamentos... E grossas
lágrimas escorreram pelo rosto da miserável.
— E por
que choras, pergunta Jeová? É uma honra estar inscrita nos preceitos que
entregarei amanhã ao patriarca Moisés.
Ajoelhada
e implorando, a Humildade pede ao seu Deus:
— Senhor
Jeová, caso eu passe a ser um mandamento, como poderei ser nomeada de
Humildade? Perderei minha identidade, prosseguiu: — Para algo existir é preciso
ter um nome. A Humildade não pode ser um Mandamento. Caso tenha algum poder,
não serei mais o que sou, seria transformada em Hipocrisia. Eu não
quero deixar de ser Humilde. Deus parou um pouco, pensou, alisou as barbas e exclamou:
- Serás
atendida, não mais farás parte dos meus preceitos. E assim foram esculpidos os
10 Mandamentos.
Muitos
anos, séculos, se passaram da entrega das Tábuas da Lei ao patriarca Moisés.
Foi quando um teatrólogo compôs um diálogo para uma das suas peças: Assim
cubro a nudez de minha perversidade/ com velhos andrajos roubados das
Escrituras/ parecendo um santo quando mais encarno o Diabo [William
Shakespeare (1564-1616) Ricardo III, Ato.I ]. Outro, seu contemporâneo e
escritor, espanhol de nascimento, disse: “A humildade é o fundamento de
todas as virtudes e sem ela não existe nenhuma que o seja” [Cervantes
(1547-1616) Colóquio dos Cães].
E concluo
eu, simples mortal:
— A
hipocrisia é uma homenagem que o orgulho presta à Humildade.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
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