Médico-Psicoterapeuta
Assisti na semana passa o discurso de
despedida do presidente Barack Obama. Pareceu-me extenuado, longe de ser aquela
figura entusiasmada que tomou posse para o seu primeiro mandato. Fiquei
pensando como o poder desgasta. Quantas coisas ele teve de engolir e quanto não
pode falar. Toda a vez que não se exprime o que se sente, o corpo vinga-se,
falando por nós.
Lembrei-me do seu discurso de vitória na madrugada do dia 4 para 5 de
novembro de 2008, ao assistir o andamento da apuração da eleição
norte-americana. No momento em que observava o noticiário televisivo das 22
horas, eis que surge, na telinha, o local de Chicago onde se encontrava armado
o palanque para o discurso do vitorioso Obama.
Àquela hora, a multidão já era considerável! Parecia que todos desejavam
assistir à realização do sonho de Martin Luther King (1929-1968). Na primeira
fila do palanque, observei a fácies de um preto velho, emoldurado por cabeleira
embranquecida, provavelmente mais pelo sofrimento do que pela idade. Marquei
aquele rosto, mas não saberia de pronto explicar a razão.
Seria uma questão de identidade? Lá sei eu! Aquele rosto me marcou,
dentro da multidão, talvez por motivo de solidariedade inconsciente. Juro que
não saberia responder. Desejava revê-lo, apenas, nem que fosse por breve
relance. Enquanto divagava, a multidão ia engrossando: crescia a festa
norte-americana. A multidão era cada vez maior. Muita luz, muita riqueza, muita
música, muita alegria e muitas demonstrações da “graça dos americanos” da qual,
na maioria das vezes, nós, brasileiros, não achamos a menor graça.
O hilário daquele acontecimento político é que, desta vez, a vitória de
Obama foi alvo de maiores explicações do que, propriamente, as causas da
derrota do senador branco John McCain. Foram aventadas hipóteses das mais
variadas, umas até mesmo estapafúrdias, tais como o emprego da internet na
propaganda eleitoral, e o absurdo da afirmação da organização racista Ku Klux
Klan de que Barack Hussein Obama não é um negro e, sim, um mulato, argumento
que enfatizava a cor branca de sua mãe.
Mas, voltando à face do preto velho, repito e sublinho: ela estava
marcada pelo sofrimento ancestral, síntese da escravidão, do preconceito, das
rugas de sofrimento, das discriminações, das amarguras, das humilhações
seculares, entre outros.
E eu desejava rever aquele rosto, no momento do discurso da vitória.
Apelei para a sorte. Havia, decerto, alguma possibilidade de a câmara
focalizá-lo, já que ele se encontrava na fila da frente do palanque. Aproximando-se
o momento do discurso do vitorioso a multidão aumentava cada vez mais, assim
como os ruídos e os gritos, alguns que pareciam, inclusive, com transes
messiânicos. Minhas chances eram muito pequenas: eu contava, apenas, com minha
capacidade de não adormecer e com um pouco de sorte. Apostei no não adormecer e
venci! Tive sorte ou tratou-se de uma força inconsciente? Não sei explicar!
O rosto do negro apareceu novamente na telinha e, desta vez, o cameraman demorou mais tempo nele. Seu
semblante continuava impassível, e as rugas, antes secas, estavam agora cheias
de lágrimas, como o leito de um rio caudaloso. Ele chorava, mas era um choro
dignamente contido. Fui dormir pensando naquilo. Época triste esta nossa: é
mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo. Michele e Barack Obama
mostraram que classe, instrução, ponderação e outros atributos de bons
governantes independem da quantidade de melanina* que portam em seus corpos.
Nota: Melanina é um pigmento
acastanhado que parece negro quando em alta concentração.
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES). Consultante
Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros
neonatologistas brasileiros.
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