quinta-feira, 17 de maio de 2018

ODISSEIA PARTICULAR

Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Os cães são o nosso elo com o Paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde, é voltar ao Éden onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz." (Milan Kundera, escritor)
Ao voltar de uma viagem resolvi adotar um cão labrador. Fui a um canil para a escolha. Logo de saída, fui por ele escolhido. Batizei-o com o nome de Sócrates.
No primeiro ano que passamos a morar juntos ele traquinava quando eu saia. Roía os móveis, fazia as suas necessidades por toda a casa, rasgava as toalhas, ralhava com ele ameaçando dá-lo para o quartel da polícia militar para sentar praça como cão farejador. O seu nome? Sócrates. O mesmo causava estranheza por toda vizinhança. Quando, com ele passeava, confundiam o nome do filósofo Sócrates com o craque futebolístico de igual apelido. Com o tempo passou a ser conhecido e querido por todos.
Argos, na mitologia grega, é o cão de Ulisses, herói grego, que depois de passar 10 anos na Guerra de Tróia, sobreviveu outros 10 anos tentando regressar ao seu lar. Quando Ulisses lhe surgiu, disfarçado de mendigo, Argos não teve a menor dúvida que estava perante seu dono. Recebeu-o como evidente reconhecimento e, deitando-se aos seus pés, suspirou pela última vez. Ulisses, que nem diante do poder e fúria dos deuses fraquejou, derramou lágrimas a seu amigo. Argos é um símbolo da fiel relação entre o animal e seus donos, fidelidade e dedicação.
O meu sábio, está envelhecendo. Não corre, não brinca, e, quando o chamo, insistentemente, vem até mim mancando e, com grande esforço. O seu pelo, dantes lustroso, está embranquecendo, evidenciando a perda do viço. Sinto, ao contrário do grego Ulisses, que perderei meu grande amigo muito mais cedo do que eu gostaria.  Para se ter um cão, não se precisa ser um Ulisses das Odisseias, mas, ter um legítimo sentimento pelo animal. Talvez essa seja a razão pela qual, nós, seres humanos, nunca conseguimos ficar totalmente longe dos outros animais. Tanto no zoológico quanto domesticados, os outros animais lembram-nos de algo que ficou para trás, mas cuja perda é apavorante.
Creio, mesmo, que teria sido um desterro, algo insuportável, Ulisses não ser reconhecido sequer pelo seu cão. Quem sabe, não seja por outra razão que Freud, doente e aquebrantado, ao final de sua vida, só compreendeu que seu tempo acabara, quando até seu cão, dele se afastou, pelo cheiro nauseabundo exalado do seu maxilar canceroso. Quando o cão lhe virou as costas, a última criatura que ainda lhe fazia suportar a vida, Freud desabou. Depois dessa recusa, ele sentia-se um “ninguém.” Rendeu-se, por fim, à perecibilidade. Morreu.
Os cães, diferente do que pensamos, entendem muito mais sobre a natureza do que nós, eles é que são sábios, embora nós sejamos os civilizados, aculturados, intelectualizados, marginalizados, quero dizer com isso, à margem dessa sua sabedoria. Ah, Sócrates, você é o cantinho afetivo desta minha diminuta odisseia particular! Sinto isto, mas, peço-lhe, não te vás tão brevemente, amigão!
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES). Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros neonatologistas brasileiros.
 

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