terça-feira, 18 de abril de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: São José em Icó

Por Izabel Gurgel (*)

Contei mais de 200 altares em casa, à porta da rua, para ver passar a procissão de São José. Seriam 208, 209?

As mãos dedicadas a instalar miudezas, a enfeitar a rua pela qual passamos, a vida a passar. Tem toalha de mesa em ponto cruz, caminhos de linha bordada à máquina; croché em linha de algodão; colchas felpudas como se gatos deitassem na janela. A natureza transformada pelo trabalho saúda a passagem do Santo. O Divino, abundante, deixa mais fofos a pele, o pelo dos bichanos.

Tem colcha de renda sintética, processada em uma velocidade desimaginável no tempo dos carros de boi, que inventavam o sertão passando por Icó. Imagine o tanto de chão trilhado que tem a procissão, hoje, se a Ribeira dos Icós já era percorrida antes da profecia do sertão virar mar e do mar virar sertão.

Glória ao desejo de luz. Tem bibelô de anjo de asa fluorescente, N. Sra. furadinha a deixar passar, corpo-peneira, a luz da lâmpada que vai por dentro da imagem. Cortejo com estátuas, estampas, objetos sagrados, enfeites muitos, de tipos variados, porque variado é o mundo criado, misturado, misturado em todas as narrativas que dele se possa fazer.

Casas abertas, calçadas bordadas de gente, mundos revelados. Tudo saudando a vida, mistério tão bonito como o altar que é só um retângulo de pano encarnado sobre um retângulo maior de renda branca artesanal, com flores amarelas, de tecido banhado na glicerina. Como se do livro de pintura, o livro que o menino segura enquanto o Santo passa, como se dali brotassem cinco girassóis de Van Gogh e ficassem sobre o encarnado e o branco, seguindo bonitezas como palha seca trançada, geometria que povos originários nos ensinaram.

Tão pequeno o altar, oferenda a ser vista de passagem, a compor uma paisagem monumental, que a fé humana não cessa de refazer. É monumental no sentido da origem do nome: para fazer lembrar, para não nos deixar esquecer. Para triunfar sobre a morte, como o Senhor do Bonfim, no rumo do qual seguem todas as procissões que serpenteiam Icó o ano todo, sendo a do Senhor do Bonfim a derradeira e primeira, no primeiro dia de janeiro.

Em Icó, o ano termina e começa de novo no mesmo dia, 01 de janeiro, ao fim da procissão. O calendário vira com a queima dos fogos do Santo, bombas feitas à mão, não é, mestre Bonfim, dos Madalena? O tempo encantado, cíclico, finda e começa. Vida e morte entrelaçadas como cordas. Cordas do coração, dos fios cor de ouro bordados sobre roxo aos pés do Senhor do Bonfim.

Está na rua o altar de casa, uma vez que estão nas janelas, ou entrevistas em quadros nas paredes ou imagens na estante, as figuras de Maria Santíssima: aqui Aparecida, ali Fátima, Lourdes na vizinha, Nazaré do Círio de Belém, peregrinas que aportaram na cidade-cruzo de estradas do Ceará colonial. Conceição, Guadalupe, N. Sra. do Sagrado Coração, e da Sagrada Família, em desenhos dos mais variados: a caber na palma da mão, a carecer de uma chegada bem perto para ver e saber do visto, e poder contar e aumentar o conto, ou a pedir uma distância. Às vezes, melhor vê quem olha de longe.

É São José no andor de cetim, que brilha e brilha, e é macio como obra boa de marcenaria, ofício-marco do Santo. Um exemplo? Cada peça feita pelo carpinteiro Dedé de Tixa (seria Ticha?), dali da rua do Meio. Dedé da família de Zé Tavares, cujo cortejo de imagens, uns dizem artesanato fino. Outros, aparição divina, obra de arte. Um saber de longo curso, vc e eu sabemos. Saber de uso cotidiano. E nos dias de festa.

Do guardado presépio de Zé Tavares, vejo Maria e José na janela e, Oh, Deus, que maravilha nossos olhos contemplam. Peças de priscas eras para um instante em que nos tornamos passíveis de eternidade. O resplendor de N. Sra. cheio, cheio de pedras preciosas. Preciosa no sentido das coisas que nos são caras.

Um menino passa e pergunta se pode ser dele, menino, quando ela, dona da casa, morrer. Ela ri. Pensa, talvez, nela própria menina, ou na legião querendo herdar algo que não se pode ter. Zé Tavares experimentou o mundo feito São José, com as mãos tocadas por necessidade e vontade de beleza.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 19/03/23. Vida & Arte, p.2.

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