quarta-feira, 13 de março de 2024

VERGONHA DO LIVRO

Por Henrique Araújo (*)

Há uma espécie de vergonha do livro no Brasil. Explico. Como objeto, ele sugere um caráter pernóstico que agride a quem não esteja participando do ato da leitura, quase sempre individual.

Portá-lo, por sua vez, equivale a signo de distinção malvisto, embora por toda parte haja entre nós essa batalha sangrenta por diferenciação a partir do consumo, seja do modelo de celular da vez, do carro ou mesmo do destino turístico.

Mas com o livro, não. Não se tolera demonstração pública de afeição ou de relação de proximidade com ele. Daí que qualquer tipo de exposição e manuseio, mesmo no privado, seja imediatamente tomado como gesto de envaidecimento e de autolouvação, tratados então como algo a se reprovar socialmente.

Há quem diga que isso só é possível num país de privação material e precariedade cognitiva no qual o objeto tenha custo elevado, considerando-se o poder de compra do brasileiro médio, cuja renda mal cobre o total dos boletos espalhados pela mesa a cada começo de mês.

Mas tem coisa a mais aí nesse desapreço - não digo apenas ao livro, mas ao ato de ler e a tudo que o cerca - que não se esgota na explicação meramente econômica.

Talvez uma aversão anti-intelectual de origem, que radica na divisão do trabalho, com a velha clivagem de classes e, em última instância, entre competências de natureza física e criativa, braçal e intelectiva.

Afinal, é o que se diz por aí, só lê quem dispõe de tempo livre, e quem dispõe de tempo ou é vadio ou explora o trabalho de outrem para assegurar a conservação das próprias riquezas, entre as quais está seguramente essa da "vida-lazer", as horas excedentes para o gozo próprio.

Mas essa teoria também é incompleta, já que, em tese, as classes com mais tempo disponível para leitura no país não são as que mais leem ou as que consomem mais livros, em seus muitos formatos e preços. No mais das vezes, dá-se o contrário, com os capitais desse estamento privilegiado se concentrando noutras searas mais rentáveis do ponto de vista do circuito de exibição comum.

Tome-se o BBB como exemplo. Trata-se de um reality cuja sazonalidade renova sempre um debate sobre a sacralidade do livro, mas sob uma chave enviesada, atravessada por memes de uma advogada-influencer cujo ostensivo ímpeto leitor é um ativo que se folclorizou como símbolo, em contraste com o interesse popular que o programa desperta.

Logo, de um lado, está o livro e seu mundo que se descortina para dentro. E, do outro, o BBB. Ambos como universos imiscíveis, feito água e óleo, as dinâmicas do jogo de intriga se constituindo como o avesso da leitura, e o exercício de decifração leitora correspondendo ao inverso do enredo que se tenta estabelecer a partir da colisão dos egos dos personagens confinados.

Em princípio, com tanto tempo disponível e fartura de meios, a "casa mais vigiada do Brasil" seria por natureza o lugar ideal para ler, certo? Mas, por decisão da emissora, o livro foi banido daquele espaço que consagra a depreciação do indivíduo, ampliando uma cisão entre apreciação cotidiana da obra escrita e o consumo dos bens culturais.

Lá, existe lugar e tempo para música, cinema, competição, gastronomia, sexo, exercícios físicos e toda sorte de elementos típicos de uma convivialidade que simula o real (tudo isso experienciado numa arquitetura que reproduz as divisões de uma casa), mas não para o livro, excluído como materialidade e existente apenas como referência episódica na boca de um dos participantes.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/02/24. Vida & Arte, p.2.

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