segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Prof. Pedro Alberto: “A MINHA FORTALEZA DESAPARECEU”

A conversa foi mais com o Pedro Alberto nascido e criado em Fortaleza, que conheceu uma Beira Mar que hoje só se vê em fotos, do que com o professor, mestre em História. Pedro Alberto gosta de valorizar os detalhes, as histórias curiosas, as lembranças singelas que muitas vezes escapam do relato oficial do historiador

Por Mariana Toniatti, da Redação de O Povo

A princípio, Pedro Alberto de Oliveira Silva não se entusiasmou muito com o convite para a entrevista. Acostumado a conversar com seus alunos em sala de aula durante os anos como professor de História, ou com os colegas do Instituto do Ceará, disse não se sentir à vontade diante do gravador. “Tem tantas pessoas que podem falar melhor sobre a cidade”, tentou se esquivar. Mas por fim aceitou e a conversa rendeu muitas lembranças. Por mais de uma hora, Pedro Alberto falou da Fortaleza de “seu tempo de menino”. Numa das salas do casarão construído em 1921, sede do Instituto do Ceará, do qual é membro atuante, o historiador deixou de lado a fala formal e abriu espaço para memórias pessoais, tão ou mais ricas quanto os dados oficiais registrados em livros.

A história oral precisa ser valorizada. Além do conhecimento acadêmico, a memória das pessoas que existiram naquele local em uma determinada época diz muito da história da cidade. Essas pessoas conhecem os detalhes, sabem até o nome dos budegueiros. Eu fecho os olhos e vejo a Gentilândia onde vivi”, diz o professor, hoje, com 70 anos, aposentado. Pedro Alberto é mestre em História. Se formou na Faculdade Católica de Filosofia, que mais tarde iria dar origem à Universidade Estadual do Ceará (Uece), e virou mestre em Recife, pela Universidade Federal de Pernambuco. Ensinou em muitos colégios de Fortaleza, começou a dar aulas na Universidade de Fortaleza (Unifor) no ano de sua inauguração, em 1973, e foi um dos fundadores do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Na semana do aniversário de Fortaleza, esse autêntico fortalezense lamenta a negligência do poder público e da população quando se trata de preservar o passado, esteja ele em prédios centenários, em relações tradicionais ou na cabeça de gerações que vão, aos poucos, indo embora. Mas o professor é otimista. Comemora o que considera o início da valorização da história oral e acredita que, devagar, os detalhes, curiosidades e belezas do cotidiano terão também seu lugar na historiografia.

OP - O aniversário de Fortaleza é uma data relativamente recente. Foi na década de 90 que se definiu o dia 13 de abril para comemorar o aniversário da cidade...

Pedro Alberto - Fortaleza, a vila, foi fundada no dia 13 de abril de 1726, mas isso, frente a certas omissões do poder público municipal, me faz crer que deve ter sido mais uma coisa de marketing do que propriamente uma rememorização de uma coisa importante. Apesar da vila ter sido fundada em 1726, ela só veio a se definir como cidade, com estágio de vida de centro mais adiantado, já na segunda metade do século XVIII. Até então Fortaleza era capital de uma província, mas não tinha esse status de maneira nenhuma. Não tinha os serviços nem a população de uma capital. Até então, Aracati e Icó tinham mais relevância.

OP - Tinha uma história de exigência de distância entre uma cidade e outra e Fortaleza e Aquiraz estariam muito próximas.

Pedro Alberto - Quando foi fundada a vila de Fortaleza foi justamente para melhorar o desenvolvimento dessa região aqui, que até então estava todo em Aquiraz. Esse é um tema histórico com diversos argumentos, é muito acadêmico. Na prática, não teve impacto.

OP - Quando fiz o comentário sobre a comemoração recente da fundação de Fortaleza, queria fazer uma provocação para perguntar se Fortaleza tem memória.

Pedro Alberto - (pára para pensar) ... Não. Do meu ponto de vista não. Tem uma memória porque a vida dela fica documentada, principalmente no século XVIII, nos periódicos. Não havia fotografia, era raro e difícil que fosse usada para registrar certos aspectos humanísticos da cidade. Fortaleza, já na segunda metade do século XIX, possuía uma memória definida em livros, em periódicos, especialmente em jornais. Mas nisso aí a memória de Fortaleza, como de todo Ceará, está muito enfraquecida. Muito pouca coisa ficou em relação ao que foi produzido na época. Não temos tradição de arquivar documentos. Fortaleza, no meu ponto de vista, tem pouca memória.

OP - Você falou em registros, coisas escritas....

Pedro Alberto - Porque em termos de prédios, Fortaleza não tem.

OP - É pior ainda?

Pedro Alberto - Pior. Não tem. Os prédios de cem anos atrás, que poderiam ser um marco na história de Fortaleza, foram todos destruídos.

OP - Me lembrei do Palácio do Plácido.

Pedro Alberto - Ah não, é mais recente, já é século XX, mas está aí um exemplo do que é a incúria do povo fortalezense. Uma obra realmente curiosa, se não histórica, que marcou época.

OP - Porque tem a memória afetiva. Aquele palácio falava de uma história de amor e de personalidades da cidade...

Pedro Alberto - Agora justamente você está entrando em algo mais objetivo. Vi recentemente pela televisão que São Paulo está lançando um livro que é nada mais nada menos do que isso que você está fazendo aqui. Pessoas que viveram em certas épocas de São Paulo antiga e deixam seu testemunho. Isso é que é interessante. A cidade tem uma história como as pessoas têm. Tem suas fases relacionadas com quem viveu aquela época. Como era o dia-a-dia, os serviços urbanos, as diversões, os estabelecimentos de ensino, os transportes, os serviços públicos, essa é que é a verdadeira memória, objetiva. Agora, em termos de vestígios materiais e históricos não temos muita coisa. Quando fui fazer A Pequena História da Telefonia no Ceará, em 1982, 83, fui procurar o Arquivo Público do município e praticamente não existia. Só recentemente é que se organizou. Se temos memória? Temos. Informação técnico-científica, livros de história, isso sim, mas informações de primeira categoria, diretas, existem muito poucas.

OP - Quando o senhor fala em informações diretas está se referindo ao patrimônio edificado, aos registros de pessoas comuns, como falávamos antes?

Pedro Alberto - O referencial iconográfico de Fortaleza está num livro chamado Fortaleza de ontem e de hoje, do Miguel Ângelo de Azevedo, que a gente conhece pelo nome de Nirez. Ele coloca duas fotografias, como era e como é hoje.

OP - O senhor lembra de algumas paisagens que chocam pela mudança?

Pedro Alberto - Tenho 70 anos, nasci em Fortaleza. Conheci o Palácio do Plácido. Agora você chega lá e tem o centro de artesanato. A antiga Sé (catedral), destruíram.

OP - Mas foi uma grande polêmica na época. As pessoas resistiram. Dom Manuel ficou até deprimido com a resistência do povo.

Pedro Alberto - Quiseram derrubar e derrubaram. Esse povo que reagiu já morreu e não tinha vez de jeito nenhum, o que ficou foi a fotografia e o que tem agora. Aí dizem que é saudosismo. Não, não é. É uma maneira de sentir a vida, de existir, que cada geração tem. Era menino quando peguei o bonde. Morei na rua que hoje é chamada avenida da Universidade e o bonde passava em frente lá de casa.

OP - Depois da segunda metade do século XX as mudanças começaram a se acelerar?

Pedro Alberto - O cearense está perdendo aquele senso de tradicionalismo. Gosta só do novo, curte o momento, aí há razões de ordem sociológica e psicológica. Os apelos para você viver intensamente são imensos. Diferente do meu tempo de jovem. Não tinha televisão, não tinha informática, as revistas eram limitadas, as comunicações eram mais demoradas. Naquele tempo existia o telégrafo. Tem fotografias que mostram os fios correndo todos os municípios do Ceará. Os jornais representavam pessoas e facções políticas, isso era bem claro, como as revistas hoje tem suas tendências. Nessa praça aqui de frente (do Carmo), de todos os prédios antigos, restaram o do Instituto do Ceará, algumas casas ali, mas o lado do Banco do Brasil foi todo destruído. Aquelas casas antigas de pessoas importantes na Barão do Rio Branco, na Major Facundo, na Floriano Peixoto, não existem mais. Todas essas ruas, daqui para lá, era tudo residência.

OP - Até o clima era outro?

Pedro Alberto - Era. Essas ruas que você está vendo aqui, todas asfaltadas, eram de calçamento ou de paralelepípedo. Todas tinham ficus de benjamim bem cortadinhos. A cidade era plana, as construções tinham no máximo três andares. A Beira Mar, conheci como o lugar mais maravilhoso do mundo. Simples, de uma beleza natural fabulosa, completamente diferente de hoje. Não tinha aqueles prédios, nada daquilo. A revista do Instituto do Ceará de 2001 tem um artigo do Caio Lopes Botelho falando do paredão que a Câmera Municipal permitiu ser construído na Beira Mar, indo de encontro às características climáticas necessárias para Fortaleza existir confortavelmente. A Câmara pura e simplesmente se omitiu. Olha, fui conhecer Recife há uns 40 anos. Antes tinha um bairrismo, naquela época Fortaleza tinha mesmo coisas interessantes, mas fiquei hospedado no Centro do Recife e em cada lugar que olhava, onde ia, via história. Muito diferente daqui.

OP - Qual a diferença entre Recife e Fortaleza? O senhor falou em fatores psicológicos e sociológicos, dá para arriscar uma explicação?

Pedro Alberto - Se você observar, o desenvolvimento de Fortaleza se deu muito rápido. Isso aqui era areia em 1870, areia frouxa, de praia, o limite do Centro era o fim da cidade. Tinha a estrada da Parangaba, aquelas chácaras, sítios, isso sempre existiu, mas de resto eram os prédios do Centro. De repente a cidade cresceu, inchou e foi tão rápido que muita coisa foi destruída com esse desenvolvimento.

OP - Parangaba era um distrito distante?

Pedro Alberto - Messejana também. Como não tinha Internet, televisão, só tinha uma estação de rádio, a vida era muito voltada para o relacionamento social. As famílias, as que tinham uma certa posse, iam pros clubes, os chamados clubes elegantes, que hoje não existem mais. Só sobrou o Náutico, o Ideal e estamos conversados.

OP - As duas janelas no paredão da Beira Mar.

Pedro Alberto - Exatamente, mas tinha o Comercial, o Massapeense, o Líbano. As pessoas se congregavam lá, havia espírito de tradicionalismo. Os galegos, que tinham chegado no começo do século XX e se tornado comerciantes, eram pessoas de destaque na época. Muitos ainda hoje continuam tradicionais. As pessoas se conheciam mais.

OP - E isso dava um sentimento de pertencimento? Contribuía de alguma forma para a conservação da memória?

Pedro Alberto - Sim. Quando a cidade inchou, isso se desfez. Quem fez a cidade crescer foi o pessoal egresso do Interior. Minha família mesmo, meus avós, vieram com a seca de 32 pra cá para educar os filhos. Isso aqui começou a inchar, inchar, sem nenhum controle do poder público e a coisa ficou como está hoje. Ainda vai piorar. Já fomos uma das cidades mais asseadas do País, justamente na época em que a área urbana não tinha as dimensões que tem hoje, o grau de pobreza que existe hoje na periferia. As pessoas são ilhas, estão isoladas, não têm esse sentimento de amizade.

OP - A autonomia dos bairros também contribui para esse isolamento das pessoas?

Pedro Alberto - Não é nem autonomia. Cada bairro hoje tem sua existência como ilha. Tem vida própria, não precisa nem vir pro Centro. No meu tempo de menino se dizia assim: ‘Você vai a rua?’. Quem morava no Interior, quando queria comprar qualquer coisa, ia para a rua, para o centro comercial. Em Fortaleza a rua era o Centro. Quem queria comprar artigos de luxo, certos petiscos, tinha que vir para o Centro.

OP - Mas essa não é a história de todas as cidades? Por que algumas conseguem preservar mais seu passado?

Pedro Alberto - O Brasil nasceu em Recife, em Salvador, no Rio de Janeiro. Eles têm um referencial econômico que nós não tivemos. No interior do Ceará, quais são os monumentos e casas que temos do século XVIII? Casas pobres. Não tem mansões como em São Paulo, no Vale do Parnaíba, aquelas casas de cafeicultores. Nada disso temos aqui. O Ceará foi uma província pobre. Peguei uma época em que o comércio era feito nas mercearias, nas bodegas. Você queria comer maçã, tinha que ir no Centro, ali na Casa Tupi. Guaraná Champagne, não tinha para vender por aí não. Não existia refrigerante, só refresco. As pessoas compravam com caderneta nas bodegas do bairro.

OP - A cidade teria ficado menos dependente do Centro na década de 50?

Pedro Alberto - Até certo ponto você ainda dependia do Centro. O comércio se concentrava aqui. Onde você ia achar uma casa de ferragem, por exemplo? Em 1958, morava no Benfica, e o pessoal vivia no Centro. O bonde saiu em 1945, já íamos de ônibus com gasolina. E o ônibus era feito aqui, em Fortaleza. Lembro quando a empresa Severino, lá no Benfica, inaugurou um chamado Paulista. Faziam filas imensas para andar no ônibus, todo acolchoado. O sujeito pegava lá na Praça do Ferreira e descia na Praça José de Alencar só para apertar o botãozinho (ri). As pessoas que moravam no Benfica iam almoçar em casa. Não comiam na rua de jeito nenhum. O sujeito morava lá no Parangabussu e ia comer em casa.

OP - Como era o Benfica, onde o senhor morava?

Pedro Alberto - Nasci e vivi na Gentilândia, o primeiro e único bairro ecológico de Fortaleza. Mais da metade da área era árvore e praça. Ainda tem vestígio disso. A praça da Gentilândia, de um lado e de outro, e aquelas casas no meio. A Residência Universitária era cheia de árvores. Ali tinha um posto do Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) cheio de tanques com peixe e um monte de árvore. A parte da frente era uma praça. A mansão do coronel Gentil, que agora é a reitoria, ainda hoje tudo aquilo é árvore.

OP - O senhor falou que nas províncias onde havia mais opulência, mais dinheiro, mais edificações históricas foram preservadas. O dinheiro também é determinante na destruição do que é antigo?

Pedro Alberto - Em certos aspectos sim. O comerciante, quando quer explorar seu negócio, não vai atrás de manutenção de memória. O Palácio do Plácido foi construído para ser o quê? Um supermercado. E nem fizeram. Em 1956, fui servir o Exército como oficial e tive que fazer exame de saúde lá no Hospital do Exército, na Desembargador Moreira. Aquilo era o fim de Fortaleza. Dali pra lá, era tudo cajueiro. Isso em 1956! Dez anos depois abriram um loteamento para o lado da Praia do Futuro, a Perimetral, feita pelo Cordeiro Neto quando foi prefeito, passava por lá. O loteamento chamava-se Planalto Nova Aldeota: onde o sol nasce mais cedo. Comprei um terreno lá em 1968, era só mato. Fui um dos primeiros moradores do Papicu. Morava bem no Centro, na Rufino de Alencar, quando o carro atravessava o trilho do trem era bandeira dois.

OP - Um passado tão recente e já se apagou.

Pedro Alberto - Justamente. Vai se apagar quando eu morrer.

OP - E como a gente pode preservar essas histórias?

Pedro Alberto - Fazendo o que você está fazendo aqui. Fotografias também ajudam muito. Ando atrás de uma fotografia da Gentilândia e ninguém tem. Da reitoria a gente vê, mas da Gentilândia só tem na minha cabeça. A maioria das pessoas só quer fazer trabalhos acadêmicos. São Paulo acordou agora para a importância de também preservar a memória pessoal, as histórias de quem viveu uma época. Tenho uma tia de 93 anos, lúcida, conhece a história da Gentilândia todinha. Umas alunas da (Universidade) Federal foram lá ouvir o que ela sabia do bairro.

OP - O senhor disse que vai piorar. Acha que vão erguer paredões também na Praia do Futuro, no Cocó?

Pedro Alberto - Não, vai piorar por causa dos carros. Ia da minha casa para Unifor, em 1973, em seis minutos. Hoje, se for às 6h30min, demoro uns 40 minutos. É mais fácil ir para lá saindo do Eusébio que do Papicu. O problema não é a especulação imobiliária, é o crescimento desordenado, sem método. Você chega em Paris, em Londres, e a cidade velha está caracterizada, preservada. A outra cidade, a nova, está planejada ali em volta. Aqui já não podemos fazer nada disso. Podemos diminuir o impacto. Esses condomínios na zona de Aquiraz, do Eusébio, já ajudam a desafogar a cidade.

OP - Quando o senhor percebeu que a cidade do seu tempo de menino não existia mais?

Pedro Alberto - Tenho 70 anos. Meu filho mais velho tem 47, o mais novo, 37, e eles já falam do Papicu onde viveram com saudosismo. A gente sente o tempo passar. O mais velho lembra quando subia as dunas, ele e a turma todinha, para brincar de tobogã. Os campos de futebol que tinha ali... Me diga, quais são as praças que Fortaleza tem? No Papicu tinha não sei quantos locais para praça. Não sobrou quase nada. Quando passo no Centro, vejo a Fortaleza de hoje, mas tenho a de 30 anos atrás na cabeça.

OP - Mas o senhor chega a ter desgosto da Fortaleza de agora?

Pedro Alberto - A minha Fortaleza desapareceu. Se esvaiu dentro de uns 40 anos. Mudou totalmente.

Fonte: Jornal O Povo, de 3/04/2008. Entrevista especial publicada em Páginas Azuis.

Nota do Blog: A postagem aqui reproduzida é uma homenagem ao Prof. Pedro Alberto de Oliveira Silva, falecido subitamente em 3/02/2021, quando ainda se mantinha lúcido, prestativo e intelectualmente produtivo, ao tempo em que prontificara a ocupar o cargo de Diretor de Biblioteca e Arquivo do Instituto do Ceará: Histórico, Geográfico e Antropológico, na próxima diretoria a ser empossada em março de 2021.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Editor do Blog e Sócio do Instituto do Ceará

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