sábado, 27 de fevereiro de 2021

COVID-19 NO CEARÁ: uma fratura quase exposta em livro

Causou acerba polêmica na comunidade científica e entre profissionais de saúde o contrato firmado, com dispensa de licitação, entre o Governo do Ceará e a Soter Design Ltda., para a elaboração do livro “Pandemia: A luta contra o Covid-19 no Ceará”, a ser escrito pelo jornalista e escritor Lira Neto, no período de dezembro de 2020 a maio de 2021, no valor total de R$ 547.537,65.

A obra tem o nobre propósito de relatar os efeitos e desdobramentos da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia de Covid-19 no Estado do Ceará, porém a proposta padece de sérios entraves que levam a questionar, tecnicamente, a justificativa da inexigibilidade da seleção pública aplicada ao caso.

O Sr. João de Lira Cavalcante Neto, que assina como Lira Neto, é um jornalista com graduação em Comunicação Social pela UFC e mestrado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Ele mora há dois anos em Portugal, onde cursa doutorado em História na Universidade do Porto.

Ao longo dos anos, Lira Neto construiu uma consolidada carreira de escritor profissional, explicitada em 13 livros publicados, sendo vários deles alçados à condição de best-sellers nacionais, tendo sido aquinhoado quatro vezes com o Prêmio Jabuti de Literatura, patrocinado pela Câmara Brasileira do Livro, por suas obras marcadamente eivadas por biografias com incursões no campo da História brasileira.

À despeito da sua reconhecida competência como jornalista e escritor, o seu curriculum vitae na Plataforma Lattes, atualizado em 7/10/2020, denota uma pós-graduação ainda incipiente como pesquisador ou investigador científico que o qualifique para a feitura de um projeto de pesquisa de maior envergadura, consoante deveria se estabelecer nos termos de referência do contrato em epígrafe.

Do rol de suas obras citadas, a única que guarda uma tênue relação com a temática da pandemia, foi o seu livro de estreia: “O Poder e a Peste: a vida de Rodolfo Teófilo”, lançado pelas Edições Demócrito Rocha, em 1999, que muito contribuiu para o resgate da memória desse varão benemérito da pátria, cujo nome estava sendo progressivamente olvidado no Ceará.

Para o estudo proposto, considerando que aventa arrolar algo como uma centena de entrevistas, o investigador precisaria submeter um projeto de pesquisa na Plataforma Brasil, mantida pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que disciplina a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, e somente poderia iniciar o trabalho depois dessa aprovação em um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), no âmbito do Sistema CEP/Conep.

O tempo médio de aprovação e de liberação de um projeto pesquisa em um CEP é de 45 dias, considerando que a proposição não tenha qualquer pendência. Isso significa que a pesquisa poderia ser aprovada em março e começada apenas no mês de abril vindouro, quando praticamente mais de quatro meses de contrato teriam decorridos e restariam três meses para se desenvolver o estudo e cuidar da editoração do livro.

Como o projeto não foi registrado nessa plataforma, não poderia ser anunciado ao público que a obra será concluída em abril, a não ser que a mesma tenha sido produzida antecipadamente e de forma irregular perante o Sistema CEP/Conep.

Nos termos contratuais, a contratada teria 210 dias para finalizar o trabalho, a contar da data da assinatura em 2/12/2020, entregando o produto final na forma de um livro, resultante da lavra autoral jornalista Lira Neto.

De outro modo, por se tratar de uma publicação post factum, inexistindo qualquer intervenção com vistas a debelar ou a minorar em definitivo os efeitos lesivos do novo coronavírus na vida dos nossos coestaduanos, não há guarida para se justificar uma contratação, nas condições ora reveladas, de um notável escritor que se encontra residindo fora do Brasil, separado da costa brasileira pelo Oceano Atlântico.

Ademais, os informes técnicos sobre a Covid-19, elaborados pela pasta da Saúde estadual, combinados com resultados de pesquisas acadêmicas pontuais, seriam suficientes para o monitoramento desejado, dispondo de maior validade técnica e científica e não se prestando apenas como peça governamental meramente publicitária, tal como se antever do resultado almejado com o livro, o qual, pelo valor monetário acordado entre as partes, deverá ser adornado com ilustrações de requinte.

Por outro lado, é muito temerário se efetuar uma narrativa, com a intenção de ser conclusiva, de uma pandemia em curso, que se mostra revigorada e em recrudescência, enquanto a tão esperada vacinação caminha muito lentamente, com baixa cobertura, em decorrência da pouca e irregular disponibilidade de vacinas no Brasil e, particularmente, no Ceará.

Se a intenção principal do Governo do Ceará for a de cumprir a sua responsabilidade de dar publicidade às suas ações de enfrentamento à pandemia por Covid-19 em solo cearense, melhor seria que o poder executivo estadual alocasse recursos financeiros em uma chamada pública específica, cobrindo os diferentes aspectos e efeitos da pandemia, a ser lançada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap). A partir dos resultados colhidos das múltiplas investigações efetivadas com o suporte financeiro da Funcap, o Ceará poderia contar com mais elementos, e cientificamente fundamentados, para construir uma narrativa consistente e a posteriori.

A oportunidade desse contrato merece uma acurada revisão, tanto em seus aspectos legais como operacionais, por parte dos gestores públicos cearenses.

Acad. Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Membro titular da ACM – Cadeira 18

Em tempo: Este artigo foi redigido em 9/02/2021, logo após uma sequência de denúncias apresentadas por parlamentares cearenses contra o suposto malfadado contrato. Diante das duras críticas reverberadas nas diferentes mídias, desde o dia 8/02/2021, o escritor alvo do contrato e o contratante postaram notas de esclarecimento, buscando justificar a contratação aludida. No entanto, em 10/02/2021, o afamado e bem-sucedido biógrafo Lira Neto, cujo nome poderia ser inapelavelmente maculado no bojo dessa pândega, desistiu de dar seguimento ao projeto editorial e o Governo do Ceará anunciou a sua rescisão contratual com a Soter Design Ltda., objeto da contundente polêmica.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

*Publicado In: Jornal do médico digital, 2(10): 77-81, fevereiro de 2021.

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