Por jornalista Tarcísio Matos,
de O Povo
Assim, até eu morro!
Rosário chegou
mansamente ao hospital, estampando o secular abrimento de boca. Mesmo com o
pedido de urgência da assistente social para que viesse ver o marido Craudim
nas últimas, ela parecia conformada, resignada. Resignada?
- Conversa,
doutora! É cansaço mesmo! Conheço a peça! Dá um trabalho tão grande isso
morrer, que a gente vamo tudim e ele fica!!!
Ela sabe. São vinte
anos de cachaça, arruaça, rapariga, fofoca e malandragem. A mulher, no fundo,
queria é que o sujeito embarcasse, pra nunca mais ver a sombra. Só àquele
hospital, pela oitava vez, era chamada para as despedidas prováveis. Dessa vez,
porém, algo diferente e nervoso no ar. Rosário num pé e noutro...
Num corredor, na
maca, Craudim arquejava; soro na veia, morre não morre, apenas ouve a conversa.
Enfermeira explica que o homem está “numa peinha de nada”. Relaciona as
mazelas: apendicite, barriga d’água, cancro mole, hemorroida, sopro no coração,
cirrose hepática, lúpus, lombriga, isquemia, pneumonia, esquecimento, paralisia,
testículo crescido, dormência nos quartos...
Rosário, ressabiada
e desabrida:
- Isso aí é
fichinha, dotora! Conheço a pustema! Bate as botas fácil não!
- Agora é pra
valer, amiga! Seu marido vai morrer! – responde a enfermeira.
- Morre uma ova! Essa
praga aí?!? Dô minha cara a bofete!
- Senhora, as
palavras têm vida...
- E eu tenho o quê?
A vida, esse fulerage me tirou toda!
Mirando os olhos
fundos do moribundo, a mulher desembucha, sentida:
- Porra, Craudim!
Tu já enterrou quatro coveiros do São João Batista, véi! Pedido de amigo, pelo
amor de Deus, pelo bem que tu quer à tua mãe: morra!!!
Inesquecível amnésia
Súbito, deu um
branco no Zé Mário, maior raparigueiro do bairro de São Gerardo. Do nada, ele
tudo esqueceu. Que foi aquilo? Mistério! O que se sabe é que havia tomado o
café da manhã, sem incidentes, e agora estava no mercantil, setor de frutas e
verduras. Olhando a penca de banana...
- Diabeisso? Pra
que serve? É de chupar, de lamber, de morder?
Olha ao redor, nada
entende. Um abacaxi... quem o espremeria no olho? Tudo tão estranho. A garrafa
de fanta de um litro... chuto ou deixo como está? Quem ocupa o lugar que era
dele até há pouco? Tipo: quem sou eu, que faço aqui? Doía-lhe pensar que, mente
tão brilhante, estivesse agora doido do juízo.
- Vala-me! Tenho
isso na mão (um celular) e não sei qual a serventia? Lascou!
Chama a atenção do
rapaz de cócoras na gôndola ao lado e tenta.
- O... Quer dizer,
a... Então... Você?... Isso aqui?... Me diga...
Acreditado haver
comido algo reimoso, consegue chegar em casa - ao sopro dos anjos bons. Da
mulher, a menor ideia tinha. Mas Glorita logo percebeu algo anormal. E se
mandou com o marido pro neuro. Mas, quem disse ela estava triste? Amou! Via no
episódio a ocasião de saber do marido os paradeiros de Rosa Loura, Chiquelena,
Pedinha Cancão e Matilda Tanajura. A resposta do desmemoriado?
- Eu sei lá quem
são essas tristes criaturas, meu amor!
- Libere ele,
doutor! Zé nunca esteve tão bem de saúde! – ordena Glorita, feliz.
- Por que? – indaga o médico
surpreso.
- Zé esqueceu o cão
das quatro raparigas que tinha! Nem passe remédio!
Fonte: O POVO, de 14/01/2017.
Coluna “Aos Vivos”, de Tarcísio Matos. p.8.
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