quinta-feira, 16 de maio de 2019

ANSIEDADE DO RECALCADO


Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
O retorno do recalcado (recalcamento) é um processo mental ativo no qual o indivíduo tenta manter, em nível do inconsciente, emoções, desejos, lembranças ou afetos passíveis de entrarem em conflito com a visão que o sujeito tem de si mesmo ou com sua relação com o mundo. Ao longo de toda a vida o ser humano atravessa estágios que servirão de formação para o seu comportamento, caracterizados por episódios marcantes que influenciarão as decisões que qualquer dito-cujo tomará durante a vida.
Lembro-me de uma passagem quando eu era estudante de medicina (graduei-me em 1958): o professor de pediatria, ao examinar recém-nascidos, filhos ou filhas de mães indigentes (o significado atual desta categoria de pacientes significa: paupérrima; pessoa que não tem condições financeiras para suprir ou satisfazer as suas próprias necessidades; miserável) ufanava-se em dizer que a nossa população está embranquecendo (ficando mais branquinha).
Lecionava ele:
O povo brasileiro está embranquecendo, como atesta a coloração da genitália de recém-nascidos com maior ou menor concentração de melanina na bolsa escrotal ou nos lábios vaginais. Imagine as sequelas causadas em falar isso para os jovens daquele tempo, em sua maioria acadêmicos de medicina brancos ou mulatos mais clarinhos.
Resultado: O preconceito reprimido está se declarando mais intenso neste momento de crise nacional. Parece uma tentativa de dividir o povo brasileiro em ‘raças’, mais do que de direita ou de esquerda, incensando o ódio entre as gentes, pondo a mostra o recalque escondido atrás do “politicamente correto”. Perguntar não ofende: Por que não me chamam de Euro-descente, ou melhor, descendente?
Sei que a escravidão, do ponto vista psicodinâmico, é tão ansiogênica para o escravo quanto para o senhor. Deveríamos aproveitar esta crise de maneira didática e construtiva para fazermos uma limpeza não exclusivamente política ou da corrupção. Advirto: crise não significa, necessariamente, desgraça. Mudanças devem ser bem-vindas, pois nos trazem lições que, se benéficas, poderão ser aproveitadas por todos.
Aquilo que não me mata só me fortalece’, afirma o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900).
Por que não aproveitamos estes momentos de crise para progredir e limpar muitas das coisas que não passam de cadáveres insepultos no sótão da nossa consciência histórica?
Para terminar, acredito ser bom lembrar que a palavra crise vem do grego Krisis, termo que tem como significado as situações e ações que ocorrem durante mudanças ou quando as coisas estão mudando de forma que nunca mudaram. Tenham calma. A aflição (ansiedade) não é boa conselheira. Vamos deixar de ser um dos povos com mais cidadãos ansiosos. Menos ansiosos já seria um grande avanço. Um dos medos generalizados dos ansiosos é o medo de ser descoberto como não sendo aquilo que os outros pensam que ele realmente é. Isso tem tratamento. Não vale a pena se desesperar.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES). Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha).

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