Bunina
Asseverou que não carecia eu plantar todas
aquelas mudas, quando eu quisesse sentir o cheiro da Bunina era só vir ao seu
jardim. Foi a primeira frase dele que senti certa intenção de me dar uma lição;
não uma lição de mestre culto, universidade, desses cheios de empáfia e poses;
mas, sim, lição de vida, cálida, sempre cercada de gestos e cuidados. Concluí
que não devemos querer tudo, muitas vezes pedir emprestado até dá motivo para
uma boa prosa.
Logo que entrei em sua cozinha já sorvi o cheiro
do café, que me inundou os pulmões, chegando rápido até o coração. Em cima da
mesinha ao lado da rede uma Bíblia de Jerusalém vermelha e um livrinho de
religião oriental. No canto da sala, uma vela acesa dentro de meia garrafa
plástica de refrigerante.
Certo que ele, viúvo convicto, sempre se saía com
uma frase, palavrinha que fosse com sentido mole, querendo ser verdade por trás
da boca enrugada. Fui aprendendo, aos poucos, a tirar o leite da cabra, a
escutar o besouro mangangá no tremido da cerca de madeira quase apodrecida.
Dia desses foi mais direto, quase aconselhando:
"Na
vida, temos que fazer as coisas sem pressa, viu, Candinha!?" - falou
para uma amiga mas olhando com um dos seus muitos olhos para mim. Sem qualquer
arrogância, essa espécie orgulhosa de superioridade que, muitas vezes, a idade
avançada vai pregando em nós, ficou como que esperando uma interferência minha na suposta conversa. "Mas sempre
devagar?", resolvi inquirir em meio a um sorriso maroto, não querendo
ser explicitamente irônico, que era para não contrariar o amigo tão gentil.
Filosofia que aprendi com meu falecido pai: nunca contrariar alguém mais velho,
sempre contrariar alguém mais novo.
Coloquei a sentença singela no meu matulão e
passei a semana pensando nela. A frase caberia com perfeição a mim, que fui
sempre um "marcha lenta", "devagar-quase-parando"... Ou, como diz minha mãe Eugênia: um
"imaginário".
Nem digeri direito sua sentença aparentemente
simples e ele já me tascava outra, desta vez já claramente estabelecendo comigo
um diálogo meio estranho, eu tentando decifrar seus ensinamentos de vida,
querendo me passar mais e mais outros. Vezes até evito passar rente à mureta de
seu belo jardim. Verdades - às vezes - se tornam fardos, pesam em nossos
ombros... Mas isso já sou eu quem diz, procurando um ouvinte invisível. Acho
que me viciei em lições de vida, em verdades camufladas nas frases singelas,
principalmente ditas por pessoas mais velhas...
Basta passar em sua calçada, sentir o cheiro doce
da Bunina, para que eu já fique imaginando sua respiração pausada:
"Acredite em tudo, meu filho, até em horóscopo de jornal"; então olho
desconfiado na direção da casa singela, balanço ligeiro a cabeça, tentando afugentar
o restinho da frase, mas resvala ainda nos ouvidos um "faz bem"
conformado.
Culpa de meu anfitrião, que nos dias difíceis de
hoje ainda encontra tempo para me surpreender com palavras: "Meu filho, reze
para seus inimigos!". Vendo meu espanto, dando um tempo para que eu bebesse ao
menos dois goles do seu ótimo suco de maracujá, me segredou com olhos
arregalados, como se decifrasse um vocábulo óbvio de uma palavra-cruzada:
"Assim,
eles te deixarão em paz!".
Fonte: O POVO, de 28/03/2019.
Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos.
p.2.
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