quinta-feira, 8 de junho de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: rendeiras do labirinto Canoa

Por Izabel Gurgel (*)

Fernanda Maria da Rocha Oliveira faz aniversário quinta, dia 18, dois dias antes do aniversário de Berenice Fernandes Pinto. São rendeiras em Canoa Quebrada. São labirinteiras, como dizemos das mulheres que fazem a renda bordada ou o bordado rendado de nome labirinto. Conheci as duas indo de casa em casa na antiga vila, hoje com cinco mil habitantes. No final de 2017 e comecinho de 2018, andei rua por rua, beco por beco, procurando por elas.

Fernanda, a Fernanda de Tiquim, o marido. Berenice, a irmã da também labirinteira Marlinda. Elas estavam na lista que comecei a fazer ouvindo Dona Valdênia Barqueiro dos Santos desenhar, com palavras, uns e outros mapas que narrativas do lugar fazem surgir em meio à paisagem atual. Estávamos na casa da sogra dela, Dona Aracy, também labirinteira. Dona Valdênia ia contando e juntas víamos fotos reunidas pela filha mais velha, Paula Renata, para uma atividade na escola, quando era aluna. Paula Renata, aprovada em concurso público, é professora na escola pública que tem o nome do poeta Zé Melancia.

Anos depois, recebo de um amigo fotos de Canoa com rendeiras em atividade. Reconheço rostos, e a cena, recorrendo à memória de passagens pelo lugar. Os tempos se sobrepõem, como um caderno de desenho aberto em uma folha branca coberta por múltiplas folhas finas, todas elas, a de papel mais denso e as transparentes, várias vezes percorridas por inscrições, anotações. Tensionam o vazio, o silêncio e o desafio que, repetidas vezes, usamos para nos referir à folha em branco.

Em uma das fotos, reconheço a senhora sentada, de costas, com o tecido branco no bastidor, fazendo labirinto. É Dona Valdênia toda. Mas 30 anos antes. Trata-se da mãe dela, Zélia, cujas habilidades com as mãos materializavam, também, caixões de papel para sepultamento de crianças. É forte, porque comum, ouvir rendeiras contando de si e contando, na mais perversa das matemáticas, mortes sucessivas em casa. "Tive nove.... quatro se criaram".

Outra foto, outro alpendre, e vejo quem não conheci. É Dona Chiquinha de Ana na cadeira de balanço, dobrada sobre a grade apoiada nas suas pernas, com o labirinto em andamento, parece uma das filhas que visitei, três décadas depois daquele dia no qual estavam quase todas à porta de casa, crianças ao redor, fazendo o que a maioria de nós mulheres há anos fazemos, como um trabalho invisível. A sustentação de cotidianos do mundo, o dar arrimo para que a vida da casa, e a 'lá de fora', possam acontecer.

Sabe quem está na foto, menino ainda? O neto de Chiquinha de Ana que, sobre as imagens daquele caderno de desenho ao qual recorri, tatuou outras anotações sobre a pele do lugar. Como Dona Valdênia em 2017 recriando Canoa, Mauro Oceans desenha futuros onde nasceu. São mais de cem grafites a céu aberto, feitos por ele, sozinho ou com mais gente por ele convocada. É uma rota possível. Andar para encontrar, no labirinto Canoa, as rendeiras do lugar. Entre as casas de Fernanda de Tiquim, Berenice, Marlinda, Dona Aracy e Dona Valdênia, uma Canoa Quebrada que amplia nossa experiência de tempo.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/05/23. Vida & Arte, p.2.

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