Por Peter Day, da BBC News / AFP
É melhor não perguntar a Mohed
Altrad qual é a sua idade. Não que ele tenha vergonha de dizê-la, é que ele
simplesmente não saberia responder com exatidão. Apesar de multimilionário,
Altrad não tem ideia de quantos anos tem - por volta de 65, talvez? E ele nem
se importa com isso.
A conversa com esse beduíno
multimilionário aconteceu em um lugar curioso: um dos hotéis mais luxuosos
desse ninho de luxo que é Monte Carlo.
No ano passado, Altrad ganhou o
título de "Empreendedor Francês do Ano". E recentemente, foi a Monte
Carlo para receber o título mundial, derrotando outros 51 candidatos no
concurso anual realizado pela consultoria Ernst & Young.
Foi aí que me contou da sua
trajetória vestindo roupas elegantes e falando um inglês fluente. Ele não dorme
muito - mas pensa e escreve bastante sobre seu passado e seu presente.
Altrad nasceu no deserto sírio. Seu
pai era líder de uma tribo beduína, e sua mãe era uma mulher pobre desprezada.
Seu pai a violentou duas vezes, e ela
teve dois filhos: Mohed Altrad e um irmão mais velho, que morreu pelas mãos do
próprio pai.
Sua mãe morreu no dia que ele
nasceu, e Altrad passou parte da sua juventude em Raqqa, na Síria, atualmente
um território dominado pelo grupo que se autodeclara "Estado
Islâmico".
Ali, foi criado por sua avó na mais
absoluta pobreza. Ela pensava que a criança se tornaria um pastor, então nunca
pensou em mandá-lo para a escola.
Instinto de sobrevivência
O jovem, no entanto, via os outros
estudarem e isso o intrigava. Ele espiou a aula por um buraco na parede e pôde
ver a caligrafia na lousa, mas não conseguiu ler o que estava escrito.
Altrad persistiu e finalmente foi à
escola. Era inteligente e sempre tirava boas notas - tão boas, que seus
companheiros ficaram com inveja quando o humilde pastor se tornou o primeiro da
classe.
Eles o levaram para um deserto onde
cavaram uma cova e o enterraram lá, antes que saísse correndo.
Altrad, porém, conseguiu escapar - e
ele nem sabe explicar como. "Instinto
de sobrevivência",
disse.
Foi aí que a sorte começou a mudar.
Um casal sem filhos resolveu adotá-lo - ele pôde voltar à escola e seguiu
tirando boas notas.
Tudo isso aconteceu em Raqqa, a
cidade que agora é a capital do "Estado Islâmico", um fato que o
entristece bastante.
Estudos e empresas
Há 60 anos, a situação da Síria
também era complicada: o país era governado por uma ditadura militar
influenciada pela França e pela União Soviética.
Altrad conseguiu uma vaga na
Universidade de Kiev, mas logo lhe disseram que seu curso estava cheio. E em
vez de viajar à União Soviética, ele foi estudar em uma das universidades mais
antigas da Europa, a Universidade de Montpellier, na França.
Chegou tarde, em uma noite fria de
novembro - e não falava uma só palavra em francês. Mas isso não foi o
suficiente para brecar seus estudos.
Conseguiu fazer um doutorado em
ciências informáticas, trabalhou para algumas das principais empresas
francesas, obteve nacionalidade do país e começou a trabalhar para a Companhia
Nacional de Petróleo de Abu Dhabi - e lá não tinha onde gastar todo o dinheiro
que ganhava.
E assim ele se salvou. Tudo o que
ele sonhava era em ter o controle do seu próprio destino.
De volta à França, ajudou a fundar
uma empresa que fabricava computadores portáteis. Quando a vendeu, conseguiu
mais dinheiro.
Depois, junto a um sócio, comprou um
pequeno negócio de andaimes de construção. E se endividou: a empresa perdia
muito dinheiro.
"Não é a última tecnologia, mas andaimes sempre vão fazer falta", pensou. E os pequenos empreiteiros
que compravam seus andaimes de metal também precisavam de caminhões e
betoneiras para misturar cimento. Assim, ele acrescentou outros serviços à
empresa.
E incentivando os funcionários com
bônus ligados ao seu desempenho, os dois sócios conseguiram reverter a
tendência e começaram a lucrar com o negócio.
Altrad usou o dinheiro para crescer
mais, comprando outras companhias.
Ele também se esforçava para tratar
bem os empregados, pedindo para que respeitassem uma lista de princípios a
partir do momento em que eram contratados.
Também começou a expandir os
negócios para fora da França, mas sempre oferecendo produtos para construção e
seguindo os mesmos princípios: além dos andaimes, oferecia todas as outras
coisas que as construtoras precisavam.
Em 30 anos, a pequena indústria
cresceu até chegar a incluir 170 empresas sob o comando de Altrad. Eram 17 mil
empregados, US$ 2 bilhões anuais em valor de negócio e US$ 200 milhões de
lucro.
E agora, ele acaba de dobrar o
tamanho da empresa - chamada Altrad Group - comprando uma concorrente
holandesa.
Felicidade
Mohed Altrad também é presidente e
coproprietário da equipe de rúgbi de sua cidade "adotiva",
Montpellier.
Mas apesar de seu sucesso e
reconhecimento, ele segue sendo um líder bastante silencioso e muito querido
pelos empregados.
"Você pode me perguntar por que estou fazendo isso", disse.
"Mas nunca foi por dinheiro. Estou tentando desenvolver um empreendimento
humanista e fazer as pessoas que trabalham para mim felizes."
"Porque se elas são felizes, elas são mais eficientes, melhores
trabalhadores e terão uma vida melhor", explica.
Isso, ele diz, é o que as empresas
deveriam ter como objetivo. "Se sou
feliz, trabalho melhor",
insiste.
Altrad também acredita que o
crescimento de uma empresa tem que ser financiado por seu próprio lucro. "Se recorre ao mercado financeiro, volta a ser escravo dos
bancos."
E ainda que sua empresa tenha estado
por trás da consolidação de uma indústria local antes fragmentada, ele tenta
não se comportar de forma monolítica.
"Uma empresa é uma identidade, um pedaço de história: são seus
produtos, seus clientes",
disse. "A tendência geral de grandes
grupos como o nosso é moldar (as companhias que compram) e fazê-las mais ou
menos iguais à nossa. Mas isso vai contra nosso conceito", diz.
Princípios
Ou seja, as empresas que fazem parte
do grupo Altrad mantêm seus nomes e sua identidade.
Todas compartilham, no entanto, o
que Mohed Altrad chama de "declaração
de princípios",
que os novos empregados devem endossar - ou melhorar.
"É um empreendimento humano", disse.
"Se alguém está interessado em uma mulher e sua primeira atitude é
dizer a ela como deve se vestir, como deve ser a maquiagem, a reação imediata
dela será: 'o que está fazendo?'. É exatamente o mesmo quando você compra outra
empresa",
exemplifica.
Altrad também usa suas noites de
insônia para escrever livros, incluindo alguns de economia. Também escreveu uma
novela autobiográfica, intitulada Beduíno, que foi selecionada pelo Ministério
da Educação da França para ser leitura obrigatória nas escolas.
Sua história tem uma importância
ainda maior na Europa, onde o tema da migração é cada vez mais importante.
"Podem dizer que tenho mais de 3 mil anos de vida. É a vida do deserto,
que tem suas próprias regras e começou 3 mil anos atrás".
"Falar com você nesse lugar tão bonito e luxuoso ainda me parece
estranho. Esse sentimento está no meu sangue, na minha vida cotidiana", afirmou.
Mohed Altrad sabe que alguma coisa
pode acontecer a qualquer momento e por isso tem algum receio do futuro. Mas
garante: "O sentimento de liberdade
também está aqui sempre".
Perguntei a ele se agora está feliz.
"Na realidade, não", contesta.
"Tenho uma dívida com a vida que nunca vou poder pagar: devolver a vida
à minha mãe, que não teve vida. A dela foi tirada muito cedo, ela viveu 12, 13
anos. Violentaram minha mãe por duas vezes. Ela viu um de seus filhos morrer e
morreu no dia que me deu a vida".
Fonte: BBC-Brasil/UOL Notícias, de 15/6/2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário