sexta-feira, 13 de abril de 2018

Sobre a “Frieza” e o “Distanciamento” no Cuidar

Por Erasmo Miessa Ruiz (*)
Certa vez ouvi de um residente médico:
"Lutamos tanto para salvar a garota. Ela tinha tanto para viver, imagine, 15 anos de idade. Ela voltou duas vezes da parada [cardiorrespiratória]. Nesses momentos ela sorria, conversava com a gente, perguntava pelos pais. Depois ela ‘apagou’ de vez, foi a óbito. Senti uma terrível sensação de vazio e ao mesmo tempo uma culpa estranha de que poderia ter feito mais alguma coisa."
Situações como essas parecem se repetir constantemente na vida de profissionais de saúde, principalmente se forem médicos ou enfermeiras. Lidar com perdas sempre é muito difícil. Imagine se elas acontecerem muitas vezes em pouco espaço de tempo.
Isso nos ajuda a entender em parte porque parece ficar cada vez mais presente a percepção de muitos pacientes ao afirmarem que médicos e enfermeiras são profissionais "frios", "distantes". As vezes essas falas podem ser traduzidas por outras: "ele não me olha nos olhos", "ela não conversa direito comigo".
O que muitos não sabem é que essa "frieza" esconderia histórias trágicas de perda e dor. Sem suporte emocional adequado, a maioria dos profissionais acaba criando uma "armadura" de distanciamento, afinal, para que vincular-me a uma pessoa que sei que posso perder a qualquer momento? Daí que os relacionamentos correm o risco de se tornar objetais, principalmente nos espaços hospitalares onde a morte acontece com mais frequência.
Óbvio dizer que as alternativas existem e estão mais ou menos postas. O problema é percebe-las e coloca-las em prática. Sinteticamente: como não se tornar frio e distante sem correr o risco de amplificar a dor e o sofrimento? Uma empatia radical faria com que o profissional se autodestruísse. Uma objetivação extrema interfere no bom tônus do cuidar além de ser um elemento definidor de menores possibilidades de cura e/ou qualidade de vida aos paciente. Por exemplo, pesquisas mostram recorrentemente que médicos mais atenciosos são fundamentais para boa adesão a tratamentos. Imagine então se pensarmos em oncologia onde as intervenções podem causar sintomatologias muito desagradáveis. Aqui, como em outros casos, boa adesão determina maiores possibilidades de cura e/ou sobrevida com qualidade.
A dicotomia entre "indiferença" e empatia radical pode ser superada se os profissionais perceberem com clareza que eles também precisam ser cuidados. Boas condições de trabalho não implicam apenas em ambientes salubres, boas condições de repouso nos plantões, boas relações interpessoais etc. Significa também que meus problemas físicos e mentais não são "propriedade individual" mas devem sofrer processos de intervenção no trabalho porque, em parte, o trabalho ajuda a configurá-los.
E junto a estes processos de intervenção existe a necessidade de questionar a forma como elaboramos nossa própria mortalidade. Se gradualmente nos prepararmos para lidar com nossa morte, ficamos mais fortalecidos para lidar com a naturalidade de perder o que amamos e respeitamos, até porque o risco da perda não está implicado apenas aos nossos pacientes, mas também a todo universo de pessoas que amamos mais intensamente.
Viver significa, entre tantas possibilidades, preparar-se cada vez mais para lidar com perdas e frustrações. Quando nos julgamos protegidos pelas muralhas do castelo, perdemos de vista o frescor dos rios, o ar puro do campo e o encanto sedutor da outra parte da cidade que circunda as muralhas. Carpe Diem.
(*) Psicólogo. Professor da Universidade Estadual do Ceará. Diretor da Editora da Uece.

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