domingo, 5 de novembro de 2023

Causo Médico: MARRADAS NO CARRO NOVO

Nos idos dos anos 1960, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, poucos acadêmicos possuíam carro, de uso exclusivo, mesmo dentre aqueles de maior poder aquisitivo. Na época, carro era quase um bem de grife, sendo comum a carona solidária, com revezamento de veículos entre colegas de turma, que podiam contar com esse equipamento da família. A maioria, entretanto, dependia de ônibus, que faziam as linhas Granja Paraíso e Costa Mendes/Rodolfo Teófilo, passando nas imediações do Campus do Porangabuçu, atualmente denominado Campus Rodolfo Teófilo ou mesmo das outras linhas que transitavam pela Av. João Pessoa, a meio quilômetro da Faculdade.

Havia um acadêmico que ganhara do pai um carro novo, do ano, e fazia questão de zelar pelo seu possante, para dar sempre a impressão de ser novo, recém-saído de fábrica; para tanto, ele estava sempre aplicando um polimento de primeira, o que conferia um brilho todo especial ao carango.

O dono do carro não o estacionava sob as copas das mangueiras, onde normalmente ficavam os carros dos seus colegas, com receio de que o mesmo viesse a se sujar com as folhas caídas das árvores. Por isso, preferia deixá-lo numa passagem entre os Serviços de Imunologia e de Microbiologia.

Um dia, por um descuido do servente do Laboratório de Imunologia, que não travou direito a porta do chiqueiro, onde ficavam acantonados os caprinos usados nas pesquisas do Prof. Raimundo Vieira Cunha, um grande bode escapou e passou a circular, livremente, na área contígua.

Enquanto explorava o terreno, o animal certamente divisou um suposto concorrente de sua espécie, dando início a uma acerba disputa por território. Na verdade, o bode visto era a imagem do próprio animal refletida na flandragem do reluzente carro, que passou a sofrer as marradas, até que a imagem ficasse inteiramente borrada. Quando o caprino mudava de posição, a sua imagem reaparecia, e com ela, novo ciclo de cabeçadas, como um aríete, para forçar a retirada do “intruso”, que ameaçava seus domínios chiqueirais.

Como o episódio aconteceu no horário de aulas, somente bom tempo depois, despertado pela sequência de baticum, o servente do Laboratório conseguiu laçar o pai-de-chiqueiro, conduzindo-o de volta ao seu redil. Mas, aí, já era tarde, o carro ficara deveras avariado, com diversas partes da lataria danificadas, para a total desconsolação do seu proprietário.

Se tivesse pelo menos sido o famoso “bode Ioiô”, ele ia passar para a “história”, e não ficar com aquela cara de tacho amassado, parecida com a do “Sinca Chambord”, depois de uma batida em fusca antecedente ao modelo “Fafá de Belém”.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Da Sobrames/CE e da Academia Cearense de Médicos Escritores

Fonte: SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina, meu humor! Contando causos médicos. 2.ed. Fortaleza: Edição do Autor, 2022. 144p. p.50-51.

* Republicado In: SILVA, M.G.C. da. AMC. Causo médico: marradas no carro novo. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Maio de 2023 - Edição n.22, p.20 (em pdf).

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