O diplomata
português Aristides de Sousa Mendes em 1940. (Cortesia da Fundação Sousa Mendes)
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James McAuley
Do "Washington Post", em Hendaye (França)
Do "Washington Post", em Hendaye (França)
Eles se reuniram na ponte, agora enferrujada e decrépita.
Um grupinho de ex-refugiados judeus, hoje na casa dos 80 ou
90 anos, retornou no fim de junho à verde e acidentada fronteira entre a França
e a Espanha, principalmente para prestar homenagem a um diplomata português quase esquecido que salvou suas vidas no início da Segunda Guerra
Mundial (1939-45).
Mas, com a Europa hoje envolta em um tipo diferente de crise de refugiados,
esses ex-candidatos a asilo foram ao local também para chamar a atenção pública
para a necessidade urgente de ação hoje.
Aqueles que tinham lembranças de infância da guerra disseram
ter se identificado com as recentes imagens de sofrimento de crianças, como as
do garoto Alan Kurdi,
o garoto sírio retratado morto numa praia turca em 2015.
Em depoimentos emocionados concedidos ao longo do caminho de
fuga que eles trilharam tantos anos atrás, de Bordeaux até Hendaye e de lá para
Portugal, os sobreviventes e seus filhos elogiaram seu salvador, Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), descrevendo-o como exemplo de um indivíduo que
se dispôs a defender a qualquer custo pessoas em situação de necessidade.
Sousa Mendes, que na época era cônsul português em Bordeaux,
desafiou as ordens de seu governo e, no verão de 1940, emitiu quase 30 mil
vistos de trânsito, dos quais cerca de um terço para refugiados judeus
desesperados para escapar da França sob a ocupação nazista. Ele foi punido severamente por isso, destituído de seu
título diplomático. Morreu em 1954 na pobreza absoluta, sem conseguir nem
sequer alimentar sua família.
"A maioria das
pessoas é avessa a riscos", disse Olivia
Mattis, cujo pai integrou o contingente de pessoas resgatadas em 1940. "Sousa Mendes não era."
Musicóloga por formação, em 2010 Mattis criou uma fundação
dedicada à preservação da memória do diplomata português. Hoje, a instituição é
administrada conjuntamente pelos descendentes de Sousa Mendes e pelas famílias
das pessoas que ele salvou.
"Você precisa se
perguntar se estaria disposto a fazer a mesma opção", comentou Jerry Jarvik, que acompanhou sua mãe, Lissy
Jarvik, que hoje tem 93 anos e recebeu um visto de trânsito de Sousa Mendes
quando tinha 16. "Será que eu
sacrificaria o futuro destas duas?", ele
perguntou, apontando para suas duas filhas.
ANTES DA 'SOLUÇÃO FINAL'
Historiadores do Holocausto observam que o que distinguiu
Sousa Mendes de outros "heróis do
Holocausto" mais conhecidos, como Oskar Schindler
e Raoul Wallenberg, foi o contexto incomum que cercou suas ações.
Sousa Mendes emitiu os vistos no verão de 1940, muito antes
de ter podido compreender o que significaria a "solução final" buscada por Adolf Hitler (1889-1945).
"Ele não sabia que
estaria salvando as pessoas do genocídio",
explicou Edna Friedberg, historiadora do Museu Memorial do Holocausto, nos EUA. "Estava
salvando pessoas de uma perseguição. Para ele, isso já era motivação bastante."
Quando a França caiu diante da Alemanha nazista, em junho de
1940, Sousa Mendes, então com 54 anos, já era um homem com problemas: ele e sua
mulher tinham 12 filhos para criar com seu salário governamental modesto, e sua
amante, uma pianista francesa, anunciara publicamente estar grávida.
Mas esses contratempos cresceram exponencialmente quando a
cidade burguesa de Bordeaux se descobriu na linha de frente de uma crise de
refugiados em escala sem precedentes.
Quando os alemães chegaram ao norte da França, milhões de
franceses e estrangeiros que já haviam buscado refúgio no país antes de sua
ocupação viajaram ao sul, em busca de segurança na Espanha e em Portugal, que
ainda eram neutros na guerra.
Para transmitir a magnitude dessa onda de pânico, os
franceses ainda descrevem esse episódio como "o êxodo". O termo
bíblico não chega a ser um exagero: em um país cuja população não passava de 40
milhões de habitantes no verão de 1940, historiadores estimam que entre 6
milhões e 10 milhões de pessoas tenham posto o pé na estrada, buscando chegar
ao sul do país por todo e qualquer meio de transporte.
Muitos dos franceses acabariam por voltar para suas casas,
mas os judeus e outros estrangeiros tinham plena consciência de que ficar onde
estavam não era uma opção. A ocupação nazista da França significaria a
imposição das leis de Nuremberg sobre a famosa república europeia de cidadãos com direitos iguais.
Assim, refugiados judeus e outros em pouco tempo começaram a
invadir os consulados da Espanha e de Portugal em Bordeaux, Bayonne e outras
cidades costeiras, procurando desesperadamente vistos e outros documentos que
lhes garantissem a possibilidade de sair da França e, eventualmente, da própria
Europa.
Desse modo, funcionários consulares obscuros como Sousa
Mendes tornaram-se guardiões cruciais da entrada em seus países, tendo o poder
de decidir o destino de refugiados.
QUEBRA DE PROTOCOLO
"Sem Aristides de
Sousa Mendes, eu não estaria aqui. É simples assim", disse Lissy Jarvik, de família holandesa judia que
fugira para a França após a invasão nazista da Holanda, em maio de 1940. "Sem ele, eu teria sofrido torturas tão dolorosas e
prolongadas que a morte teria sido um alívio bem-vindo. Sem ele, eu não teria
conhecido três quartos de um século."
A maioria dos diplomatas espanhóis e portugueses dotados de
qualquer autoridade deu ouvidos a seus governos, que, embora ainda fossem
nominalmente neutros, buscavam evitar a entrada de refugiados que pudessem
prejudicá-los aos olhos da Alemanha nazista.
Portugal não era exceção: seu ditador, Antônio de Oliveira
Salazar (1889-1970), havia emitido a famosa "Circular 14", que
ordenava a diplomatas e funcionários consulares negar vistos a judeus, russos e
outros apátridas. Mas Sousa Mendes não respeitou o protocolo.
Naquela que o historiador Yehuda Bauer descreveria como
"possivelmente a maior ação de resgate
realizada por um indivíduo isolado durante o Holocausto" – maior ainda que a famosa intervenção de Schindler–,
Sousa Mendes ofereceu ajuda indiscriminada a dezenas de milhares de pessoas. Em
vista das consequências profissionais e pessoais devastadoras que ele sofreria
em pouco tempo, a razão por que ele o fez ainda é um mistério.
Alguns dizem que o ponto de virada para Sousa Mendes pode
ter sido sua amizade com o rabino polonês Chaim Kruger, que fugira da Bélgica
para a França e que se recusou a aceitar um visto de Sousa Mendes a não ser que
o diplomata fizesse o mesmo por outros judeus.
Em uma carta escrita a um de seus cunhados em junho de 1940,
no pior momento da crise de refugiados, o cônsul se queixou de estar sofrendo
"forte colapso nervoso". Mas alguns dias mais tarde, ele parece ter decidido
seguir as diretrizes que considerou que sua fé lhe impunha. "Prefiro me posicionar com Deus contra o homem do que com
o homem contra Deus", disse Sousa Mendes.
SONHO AMERICANO
Enquanto ele e sua família passaram a viver na pobreza
–chegando, depois da guerra, a alimentar-se num centro administrado por judeus
que servia refeições a indigentes–, muitas das pessoas que ele salvou acabaram
por ter vidas de destaque nos Estados Unidos e outros países.
A grande família do galerista parisiense Paul Rosenberg,
legendário marchand que vendeu telas de Picasso, Braque e Matisse, escapou para
Nova York graças a 17 vistos emitidos por Sousa Mendes no verão daquele ano. A
célebre galeria Rosenberg foi transferida para Manhattan, onde versões dela
existem desde então.
Ina Ginsburg, então conhecida como Ida Ettinger, virou uma
figura poderosa no cenário social de Washington durante décadas, colaborando
com seu amigo Andy Warhol em artigos célebres sobre o que o artista certa vez
batizou de "Hollywood à margem do
Potomac". Ginsburg morreu em 2014, aos 98
anos.
Alexandra Grinkrug, que hoje tem 81 anos e recebeu um visto
de Sousa Mendes aos 4, recorda-se de pouca coisa daquele verão no sudoeste da
França, exceto pela casa que seus pais alugaram nas redondezas e pela emoção de
andar em um carro grande, algo que na época não era uma experiência do dia a
dia.
Embora sua família, formada por judeus russos de destaque,
tenha acabado por se radicar em Los Angeles –onde seu pai, executivo de cinema
que produzira o sucesso de 1938 "Hotel
du Nord", faria carreira –, quando adulta
Grinkrug acabaria voltando a Paris, onde hoje vive como pintora.
Um Homem Bom. Por Rui Afonso |
Ela disse que estava seguindo o trajeto que percorreu em
1940 não por qualquer desejo especial de reviver a experiência, mas por um
misto de gratidão e sentimento de culpa.
"Quero dizer
obrigada a Sousa Mendes –e pedir que ele perdoe meus pais por nunca terem
sequer sabido seu nome."
JAMES McAULEY é um repórter radicado em Paris.
Tradução de CLARA ALLAIN
Fonte: Folha 11/07/17
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