A negação da morte sempre cobra um preço o encolhimento da nossa vida interior, a atrofia dos sonhos
Quando
chega o Dia de Finados, lembro-me do que está escrito na porta do cemitério da
cidade onde nasci: “Hodie
mihi cras tibi” ou seja, “Hoje eu, amanhã tu!”
Quando criança nunca me preocupei com tal afirmação. Afinal, crianças não
pensam em morte.
Parece assustador, nestes tempos em que vivemos a
“ditadura da felicidade”, parece não haver mais espaço para a emergência de
temas profundos como sofrimento e morte. Há um dado que nos afeta em tempos
pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar limites, perdas, fracassos,
mortes. Vivemos a cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência
humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Na
“sociedade do espetáculo” tudo é feito para escondê-la e incitar-nos a não
pensar nela. Ela não foi apenas camuflada. Ela foi privatizada, dobrando-se às
leis da economia de mercado. A negação da morte sempre cobra um preço o
encolhimento da nossa vida interior, a atrofia dos sonhos. Encarar a morte como
plenitude não só nos pacifica como torna a existência mais preciosa, vital. A
celebração do Dia de Finados é uma oportunidade para fazermos uma reflexão
sobre a vida. A Igreja, hoje, nos convida a entrar em comunhão com o Deus da
Vida e rezar com nossos falecidos e por nós que “vivemos esta vida com sabor de eternidade”. Este dia deve alimentar em nós a sabedoria de nos
fazer presentes diante da morte. Pensar a morte nos faz pensar a vida. A
experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um
catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.
Aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que,
reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal
vivida é a vida, maior a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver
plenamente, mais se teme a morte. Santo Agostinho escreveu que “é apenas
perante a morte que o caráter de um homem nasce”. A morte é processo permanente
de esvaziamento do ego para viver de maneira mais oblativa, no compromisso e na
doação aos outros. Fazer memória daqueles(as) que nos precederam e considerar
nossa morte como travessia para a plenitude, é confiar no mistério divino, que
é maior do que o mistério da morte, e confiar na comunhão onde os laços não se
perdem na noite escura da morte. “Morrer é
fechar os olhos para ver melhor”, ver Deus e
a plenitude da Vida que desde sempre nos preparou. A morte é o nascimento para
a vida que não tem fim. No fim, o início de tudo.
(*) Padre jesuíta. Diretor do
Colégio Sto. Inácio, em Fortaleza.
Fonte: O Povo, de 2/11/2017.
Opinião. p.11.
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