sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O FOGO E O RELATO OU O COMPLEXO DE PROMETEU

Por Cláudia Leitão (*)

O fogo e o relato é o título dos ensaios de Giorgio Agamben sobre o lugar da arte e do pensamento como estratégias de sobrevivência. Neles, ética e política, arte e criação emergem da tensão entre o fogo (mistério) e o relato (história). Agamben toma a literatura como alegoria para pensarmos a humanidade e seu afastamento cada vez maior do mistério, simbolizado pelos ensinamentos ancestrais sobre o fogo, ou melhor, pela vocação poética e mítica dos seres humanos.

Gaston Bachelard, ao escrever A Psicanálise do Fogo, reflete sobre o que denomina de "complexo de Prometeu", observando que "se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura. Cozinha e apocalipse." Há nos dois filósofos uma comprensão comum de que o fogo é um ser ao mesmo tempo natural, social e cultural.

O domínio do fogo simboliza o a sociedade industrial, mas o que primordialmente se conhece sobre o fogo é que não podemos tocá-lo. O Brasil arde. As chamas da Amazônia, do Pantanal, das fazendas do interior de São Paulo cobrem de fumaça as cidades brasileiras. O que dizer, em meio à poluição do ar e à morte dos seres vivos (humanos e não humanos) sobre o "complexo de Prometeu"? Segundo Agamben, "só podemos ter acesso ao mistério por meio de uma história e, todavia, a história é aquilo em que o mistério apagou ou escondeu os fogos". Triste dilema. Um incêndio determina um incendiário quase tão fatalmente quanto um incendiário provoca um incêndio. Bachelard insiste que o fogo se propaga mais seguramente numa alma do que sob as cinzas.

A tenacidade e a insaciabilidade crescentes do fogo mostram monstruosamente que a existência humana, tão rica em possibilidades, vem perdendo o mistério e apagando, uma a uma, suas fogueiras/devaneios. Sobra-nos o relato, a história desencantada. Tornamo-nos, como as cinzas, os excrementos do fogo.

(*) Cientista Social. Professora da Uece. Sócia da Tempos de Hermes Espaço Criativo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/09/24. Opinião. p.18.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog