sábado, 5 de outubro de 2024

UM NOVO ROTEIRO PARA O CINE NAZARÉ: imóvel está à venda, mas ainda não é um Fim!

Por Cláudio Ribeiro (*)

Acervo do último cinema de bairro de Fortaleza é assumido oficialmente pela cultura estadual. Seu Vavá, criador da sala de projeções no Parque Araxá e "fazedor" de outros cinemas em várias cidades, faleceu em 2022. Seu sonho era ainda poder reativar o Cine Nazaré

Imaginar aqui, livremente, o roteiro da despedida, do último cinema de bairro de Fortaleza. O percurso feito por esta coluna aos pequenos recortes da rotina da cidade celebra o último ato, apenas físico, do Cine Nazaré, a sala de exibições de filmes do bairro Parque Araxá. Que existiu por mais de quatro décadas, num sonho corajoso, obstinado, e também poético, construído por seu Vavá (Raimundo Carneiro de Araújo, que faleceu em 2022 aos 91 anos de idade

O imóvel, de 295,68 m², na rua Padre Graça, nº 65, recebeu a placa de venda. Após a morte de seu Vavá, as filhas decidiram oferecer o prédio a quem interessar possa. Fica a menos de meio quarteirão da avenida Bezerra de Menezes. Segundo a corretora, há algumas avarias, que são recuperáveis. Mas o desfecho dessa história também tem um vento de reconhecimento ao que representou o Cine Nazaré. Não será uma cena final. Já há uma sequência garantida desse “filme” em andamento, em outro espaço.

CENA 1

> Som de fundo com uma trilha antiga, ideia de nostalgia. Câmera percorre a fachada lentamente. Mostra a placa da rua Padre Graça, no Parque Araxá. Aplica-se um efeito para caracterizar a cena como envelhecida. Via de pouco movimento, pessoas passando na calçada em frente. Uma mulher usa uma sombrinha para o sol forte, outras duas carregam compras. Um vizinho observa qualquer coisa e espera fofoca. O vira-lata se coça na sombra do poste. Calmaria inabalável.

> Duas palmeiras jovens demarcam a entrada principal do imóvel de número 65, que é o personagem principal. Cine Nazaré. (Em outra época, ali lotava. Três sessões por tarde/noite, gente interessada em assistir a clássicas produções do cinema italiano, francês, brasileiro. Exibições feitas em projetores de 8, 16 ou 35 mm. Era início dos anos 1970. E foi assim por mais de quatro décadas.)

CENA 2

> Cena volta para os dias atuais, sai o efeito de imagem envelhecida. Câmera direciona para uma portinha no lado direito do prédio (simetricamente, havia outra porta do lado esquerdo, foi fechada com tijolos). A placa diz: “Conserta-se calçados. Seu sapato velho ficará novo”. Mostrar seu Bené (Raimundo Benedito Rodrigues), de 91 anos. Ele é o inquilino do ponto desde 2009. Hoje sapateiro para aumentar o ganho do mês, já foi chefe de refrigeração, porteiro e zelador de cinemas tradicionais da cidade, como o São Luiz, Diogo, Fortaleza e Jangada. Trabalhou 29 anos no Grupo Luiz Severiano Ribeiro.

> Câmera mostra Bené encostado de pé em sua porta ou no balcão, à espera de algum cliente. O chapéu lhe esfriando o rosto daquele sol de meio-dia. Ao lado dele, uma máquina grande de fazer pipoca, original de sala de cinema (comprou para revender, pede R$ 600). A câmera parte dele e segue para uma tomada lateral de toda a fachada. Bené sabe que só ficará por ali por mais algum tempo.

CENA 3

> Novo enquadramento, frontal, mais aberto. Mostrar “a cara” do prédio. O branco da fachada está sujo, pedindo repintura. Fecha para mostrar o letreiro desgastado. Tomada fechada no nome do lugar, “Cine Nazaré”. Letras graúdas, a tonalidade quase apagada, precisando ser renovada de cores. Havia uma luminária, foi arrancada. O portão principal de acesso, de chapa de ferro, é um amarelo ouro, está pichado, tem pontos de ferrugem. Mostrar a tranca, um cadeado pequeno, frágil. O interior do prédio está vazio no andar de baixo. (No andar de cima, há quatro quitinetes, ainda ocupadas com moradores. Tanto eles como seu Bené deverão ser despejados, logo surja um novo proprietário).

CENA 4

> A tomada em movimento lento direciona para as duas placas fixadas em dois basculantes no alto da fachada. Nelas, o mesmo número de telefone (98826-6013) e o anúncio a quem interessar possa: “Vendo”. Segue a trilha sonora saudosista. A imagem enquadra o prédio e se distancia lentamente - volta o efeito envelhecido da cena. Destaca o tom de despedida. A tela vai escurecendo e… reabre, numa trilha e imagem mais atual, límpida, mostrando detalhes da nova Sala de Cinema Seu Vavá, num espaço inaugurado em 2024 dentro do Cineteatro São Luiz, no Centro de Fortaleza.

CENA 5 - FINAL

A nova tomada da câmera percorre o ambiente da Sala Seu Vavá. Ideia é mostrar tudo o que já esteve em funcionamento no antigo Cine Nazaré. Cena inicial mostra um projetor de 35 mm antigo, em funcionamento. Num contraluz, o rolo de filme gira exibindo cenas de clássicos italianos, franceses e brasileiros ainda dos anos 40. Também projetores de 8 mm e 16 mm. O público senta em poltronas vermelhas, 45 assentos de estofamento confortável (são originais do primeiro São Luiz, inaugurado em 1958, que haviam sido recuperadas e reaproveitadas por seu Vavá). A sala tem a magia de um passado recente. Ali o Cine Nazaré está reavivado. E a cena continua até aparecer o letreiro clássico surgir diferente: “(Não é um) Fim!”.

***

A aura poética do lugar, e também o mobiliário, o maquinário e outros objetos do acervo de Seu Vavá já estão com a restauração e preservação garantidas, assumidas pelo poder público. Nesta sexta-feira, o Instituto Dragão do Mar (IDM), que atua ligado à Secretaria Estadual da Cultura (Secult), recebeu oficialmente todo o conjunto de equipamentos e filmes e pertences do trabalho de seu Vavá. A organização social gestora dos cines São Luiz e Dragão do Mar já estava de posse do material desde janeiro. Foi assinado um termo de comodato entre a presidente do IDM, Rachel Gadelha, e a filha mais nova de seu Vavá, Iris Machado, representante desse espólio. O contrato é válido por dez anos, renováveis por mais uma década. Sem ônus, com a obrigação dos gestores culturais zelarem os itens. Para exibições e exposições, sem finalidade lucrativa.

Conforme o termo assinado, a lista doada tem os seguintes itens: “um projetor manual de 35 mm; um projetor analógico de 8 mm; um projetor analógico de 16 mm; um projetor analógico de 35 mm; Lentes de Projeção Cinematográfica; 78 letras em acrílico, em tamanho pequeno e médio, para uso em letreiro de cinema; uma cadeira de madeira, remanescente das cadeiras do Cine Nazaré; 45 poltronas de cinema acolchoadas, de madeira envernizada e estofado na cor vermelha; 150 estojos contendo rolos de filmes de 8 mm, 16 mm e 35 mm, cujas condições de uso serão verificadas posteriormente; duas cornetas (alto-falantes); um voltímetro; 15 fitas VHS; oito livros de teor técnico; uma cartela de ingressos de cinema”.

***

Seu Vavá tinha nove para dez anos de idade. Passava ao lado do Cineteatro São José, próximo ao Seminário da Prainha, quando viu, pela fresta da janela uma tela de cinema pela primeira vez. Era um faroeste, as imagens de cavalos atravessando a parede. Foi encantamento à primeira vista. Rapazote, nos seus 16 anos, virou um faz-tudo, de porteiro a gerente, do Cine Familiar, sala mantida pelos padres capuchinhos que funcionou por alguns anos na praça do Otávio Bonfim. Depois de muito trabalhar para outros, e quando os frades precisaram demiti-lo porque o Cine Familiar acabou, recebeu os direitos trabalhistas teve o estalo de abrir seu próprio negócio. Comprou o imóvel e montou o Cine Nazaré, em 1970.

Especializou-se como um autodidata, tinha as técnicas e macetes e virou um “fazedor de cinemas”. Porque era contratado para montar salas de projeções pelos cafundós afora. Percorreu várias cidades do Interior cearense, Nordeste e Norte do País. Chegou a ser chamado até para abrir um cinema no garimpo de Serra Pelada, na década de 1980. Os filmes de lá eram os pornôs e chanchadas - mas isso não era ele que definia. Tantas viagens, vivia longe de casa por isso. Ele fora vários meses ou semanas do ano, e dona Maria, sua mulher, cuidava das três filhas e chegou a administrar borracharia, marmitaria e escola de datilografia. “Minha mãe foi uma heroína”, conta Iris. Ela morreu em março de 2017.

(*) Jornalista de O Povo

Fonte: Publicado In: O Povo, de 5/10/24. Cidades. p.16.


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