Por Márcia Alcântara Holanda (*)
“A velhice carece de descanso, mas é nesse
descanso que o pensamento se acalma e ganha novas formas"
Minha amiga Rita e eu, entre um gole de
café e outro, dias atrás, voltamos a conversar sobre a velhice: suas
possibilidades e entraves. Eu dizia que ela é viável e livre, mesmo com o corpo
entremeado de limitações extremas. Rita, percebendo meu corpo envelhecido,
pediu-me explicações. Acessei minha vida com intensidade e comecei falando de
quando parei de clinicar, aos 79 anos. Sentia-me cansada e queria mais tempo
para ler e trabalhar com as palavras. Havia me aposentado do serviço público,
assim como Riobaldo em Grande Sertão: Veredas quando diz: "Vivi puxando
difícil de difícil. Agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos
desassossegos, estou de range rede, me inventei nesse gosto de especular
ideia".
Expliquei também que "A velhice carece
de descanso, mas é nesse descanso que o pensamento se acalma e ganha novas
formas" como ele falou. Foi o que fiz, mesmo com a velhice aos 82 anos,
marcada por cinco doenças crônicas controladas e, há um ano, por um câncer de
elevada malignidade.
Com essas marcas físicas e emocionais,
observei a vivência de personagens de livros clássicos e encarei-me com atenção
ao deparar-me com a finitude. Segui o exemplo de Riobaldo: mergulhei nas águas
profundas do pensamento consciente, fiz breves pausas para um respiro às
percepções e emoções que os feitos da minha vida até então me trouxeram. Em
cada respiro, analisei o que construí: vidas salvas, família sustentada pelo
trabalho árduo. Vi também os erros e sombras que me acompanharam — amizades
desfeitas, comportamentos que feriram relações familiares e profissionais, e
vícios que embotaram as emoções e traumas do passado.
Enfrentei essa travessia e emergi com um
novo entendimento. Ao me deparar com esse desvelar senescente e um corpo
minado, conheci minha essência e, com isso, conquistei uma liberdade plena —
quase absoluta. Meu ser-em-si e ser-para-si, como diria Sartre, foi atualizado
para a velhice. Percebi que um corpo velho e doente pode, sim, ser livre: para
o que desejarmos fazer: do amar ao cuidar-se, ao divertir-se e emocionar-se, ao
viver pleno. Ele impõe limites, mas dentro deles há liberdades absolutas.
"Como?", questiona Rita.
Citei-lhe um exemplo de Simone de Beauvoir em Cerimônia do Adeus, posição 698
no Kindle, quando Sartre passou anos recusando uma dentadura por causa de
gengivas abcedadas. Ele dizia que uma dentadura inviabilizaria sua fala.
Considerava a velhice inviável, mas quando falar se tornou impossível, ele a
aceitou. Dois dias depois, comentou sobre o ajuste: "Foi maçante, mas eu
só pensava nos meus dentes, e estava tão contente!" Beauvoir acrescenta:
"Havia nele um cabedal de saúde física e moral que resistiu a todos os
golpes, até as últimas horas." Assim, cai por terra a inviabilidade da
velhice que ele tanto apregoava. Tilintamos nossas xícaras ao final.
(*) Médica pneumologista; coordenadora do
Pulmocenter; membro honorável da Academia Cearense
de Medicina.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 23/09/2024. Ciência & Saúde. p. 2.
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