Por Izabel Gurgel (*)
- Costela. Dona Dinha diz o nome do ponto que faz a mão, com agulha
e linha, para juntar as partes tecidas das redes que produz em tear artesanal
na casa-oficina-museu onde mora, no bairro Vila Alta, em Nova Olinda, no Cariri
cearense.
Uma rede recebe várias costelas. Retangulares e explícitas na peça
finalizada, espacializadas ao longo do comprimento, as costelas são um modo
técnico de dar sustentação às partes tecidas em separado. Feitas no tear, cada
uma das partes da rede são como longos caminhos de mesa, tapetes do tipo
passarela.
Aos nossos olhos visitantes, as costelas surgem a cada vez que Dona
Dinha abre uma rede para nos mostrar o trabalho pronto. As redes, sabemos, são
guardadas feito origami, várias vezes dobrada sobre si.
As costelas atraem o olhar como certas flores se tornam ímãs para
abelhas realizadoras do trabalho de polinização. É um recurso técnico o uso da
costela na rede, repetimos, e se nos apresenta como estético. Desenho e função
parecem um.
Em Santana do Cariri, município vizinho à Nova Olinda, o Museu de
Paleontologia Plácido Cidade Nuvens guarda fósseis de peixes que, imaginamos,
bem ilustrariam um manual das artes de tecer segundo Dona Dinha.
O padrão que se repete formando a coluna vertebral nos deixa ver
uma 'costela' depois da outra. Refiro-me à costela como o núcleo mais denso no
eixo da coluna e não os prolongamentos a partir dela, que seriam, em
vertebrados como nós humanos, as costelas propriamente ditas.
Os conhecimentos guardados por Dona Dinha do ofício que aprendeu
criança são um fazer incorporado. Como na dança, ainda que estejamos dançando
'apenas' com os olhos, com um quase imperceptível movimento de cabeça e um
dobrar mínimo de joelhos, o corpo inteiro está implicado no mover o tear em
direção ao tecer.
Como a Terra a girar em torno de si ao tempo em que gira ao redor
do sol, dança o corpo-tear de Dona Dinha. Corpo-compositor-maestro orquestrando
madeiras e fios. É no corpo, com o próprio corpo, que Dona Dinha faz funcionar
toda a instalação. Tão bonito e complexo o fazer quanto o feito.
Anoto aqui: o madeiramento estruturado para tecer e o manejo dele,
simplificados na expressão tear manual. As medidas e maturações de cada
material, os cortes, as junções, as partes móveis e o esqueleto fixo que
constituem o tear. Casar trama e urdume.
O manejo de fibras vegetais até chegar ao fio, fibra fiada, à
linha. O plantar e o colher, a lida com a terra. A invenção de usar pigmentos
para dar ou mudar a cor de objetos criados para o cotidiano.
Dona Dinha, Raimunda Ana da Silva, é de uma família dedicada a fiar
e a tecer. Artes possíveis pelo laborar na biblioteca das águas, com leituras
do que chamamos natureza, coisa viva de inteligências diversas.
Penso no tear e tecer do Ciel no Cariri do Ceará. Ele vive no sítio
Farias, no Arajara, em Barbalha. De 30 deste mês a 2 de novembro, participa dos
50 anos do Salão de Outubro no Crato Tênis Clube, no Crato. Vi o vídeo "O
céu do mestre tecelão", na exposição individual "Céu, quando o
material acusa o processo" no CCBNB.
O que quer que façamos e sejamos (hoje), trata-se de coisa de
milênios. Muitos.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 27/10/24. Editorial, p.2.
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