Por Paulo Roberto Carvalho de Almeida (*)
A vida, em suas
múltiplas faces, se faz prolífica em símbolo, nos infinitos grãos de areia, a
escorrer por entre os dedos de todos os homens, de todas as épocas. E nos deixa
a sensação da inutilidade de tentar retê-la, da impossibilidade de apreendê-la,
principalmente de compreendê-la em sua fugacidade perene. O “herói de mil
faces” de Campbell permeia o imaginário mitológico de incontáveis civilizações.
Ele tem uma origem, uma trajetória e constrói um destino, com lutas,
sacrifícios, prazer e sofrimento. O herói paga um preço, às vezes a própria
vida, para no final atingir a redenção, o cume, a quase-perfeição. Um semi-deus
que no final se humaniza, em sua mortalidade e enfim, torna-se mito. E os
mitos, como disse Pessoa, podem não ser verdade, mas serem verdadeiros.
Assim sucedeu com
Ronaldo Ribeiro, tornado mito em sua fugacidade, morto prematuramente, segundo
creio, ou cremos. Assim se extinguiu, de repente, um meteoro gigantesco, que
cresceu aos poucos no cenário científico local, nacional, mundial, iluminando quantos,
em tantos caminhos que com ele cruzaram.
A civilização
grega, como nossa essência primordial, cultural e filosófica, nos legou, entre
tantos tesouros, uma rica mitologia. Nela a figura de Aquiles desponta em
máxima magnitude. Filho da deusa do mar Tétis e do mortal Peleu, Aquiles,
considerado “o mais valente dos gregos” adquiriu poderes quase imbatíveis ao
ser banhado, logo que nasceu, por sua mãe, nas águas do rio Estige. Seu único
ponto fraco residia em seu calcanhar, onde sua mãe segurou-o ao mergulhá-lo.
Como no mito grego,
Ronaldo jamais abdicou de uma luta, não entregava os pontos e geralmente
ganhava. Como o herói de Tróia, enfrentava os maiores obstáculos com a
disposição de alguém muito mais jovem, temperado por uma vontade ferrenha de
conquistar a verdade científica. Foi assim que me guiou em minha aventura
através da ciência e me incentivou a trabalharmos juntos, o que muito me honra
e orgulha. Quando Ronaldo me orientou na pós-graduação, o Prof. Livino Júnior,
nosso amigo, brincava com ele, apelidou-o de “macrófago” por ter-me
“fagocitado” para a Farmacologia, o Ronaldo ria às gargalhadas com esse apelido
dado pelo Livino.
Diferente de
Aquiles, seu ponto vulnerável estava mais acima, no coração. Coração que viveu
apaixonadamente cada minuto, que vibrou com intensidade máxima em cada pequena
ou grande descoberta, que comemorou a vida em sua cotidianidade festiva e
explodiu em excessos barrocos a exuberância de sua mente e de sua verve nos
relacionamentos humanos.
Ronaldo viveu como
queria. E morreu como seria esperado. Como Aquiles, preferiu a vida intensa e
curta a uma longevidade serena sem muitos fatos marcantes. De certa forma,
morreu como quis, pesquisando, ensinando, estudando, aprendendo, viajando nos
congressos, nas cidades e nas almas. É emblemático que tenha morrido durante um
Congresso científico, depois de uma festa!
Não vi seu corpo,
tal a multidão que se concentrou em torno de nossa despedida para ele. Mas
talvez até eu não quisesse vê-lo. Para mim e para muitos, creio, Ronaldo será
sempre a imagem do eterno menino, agitado, inquieto, discutindo sobre tudo,
avesso a algumas regras absurdas, sempre disposto a estender a mão e que deixa
um vazio imensurável em nossas vidas, nos seus amigos, a quem soube cativar.
Ronaldo estará
presente conosco neste e noutros lugares, a lembrar que o tempo, o espaço,
cabem dentro de nossas mentes e de nosso peito, a recordar que suas palavras,
pensamentos e ações se multiplicarão nas aulas, nos laboratórios, nos
congressos, nas pesquisas, nas festas e também nos momentos solitários de
nossas reflexões e decisões em que nos desiludimos e nos reinventamos.
Em seu poema “Morte
absoluta”, Manuel Bandeira indaga: “Mas que céu pode satisfazer teu sonho de
céu? “Respondo: se céu houver e assim espero (embora duvido muito), Ronaldo
estará brincando com as barbas de São Pedro, questionando “se é um mecanismo
dos receptores Toll-like” ou “um caso para se tratar com o mesilato de
Imatinib”. E assim ele viverá, querido, irreverente, enquanto houver
memória, enquanto houver saudade. Eu poderia encerrar com uma frase sobre
saudade de Da Costa e Silva, “Saudade, asa de dor do pensamento”, tão
apreciada pelo Prof. Eilson Góes, nosso também querido e falecido mestre da
Patologia, mas prefiro as palavras do próprio Eilson sobre a memória: “Então,
a borboleta trêfega, adornada de mil nuances, fascinou-se pelos jardins da
memória, repousando afinal…. ainda com um sopro de vida, que ressurgia ao
cálido contacto de existências que se encontravam numa encruzilhada de destinos”
. Assim estamos todos nós aqui, para fazer valer a memória nessa encruzilhada
de destinos unidos pelo nosso amigo Ronaldo Ribeiro.
Obrigado por
compartilharem este momento.
(*) Médico patologista,
Professor da Universidade Federal do Ceará.
Em Fortaleza, aos
12 de dezembro de 2015.
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