A pandemia da rotulada gripe espanhola, que grassou entre nós nos anos 1918-20, teve taxas de mortalidade e de letalidade bem superiores às observadas pela Covid-19, porém não se disseminou nos vastos rincões nacionais, poupando várias unidades federativas, tanto que, na terra alencarina, há pouco registro documental da passagem da “bailarina”, um dos epítetos aplicados a essa pandemia, associando-a a uma pretensa origem nas ilhas Baleares pertencentes à Espanha.
A
epidemia de meningite meningocócica, que açoitou o Brasil de 1972 a 1974,
atingiu boa parte do Brasil, produzindo elevadas taxas de incidência, de
mortalidade e de letalidade; contudo, não causou tanta comoção nacional à conta
do estado de exceção, na vigência do regime castrense que nos governava, quando
então não se poderia divulgar na imprensa a ocorrência dessa epidemia, por
suposta questão de segurança nacional.
A
maneira como a Covid-19 chegou ao Brasil, aportada nas classes sociais mais
abastadas, a partir das suas conexões internacionais e depois como transmissão
comunitária, assumiu uma expansão avassaladora nas periferias urbanas e entre
populações economicamente desprivilegiadas, gerando uma situação de epidemia de
alcance geográfico não experimentado nos últimos cem anos.
A pandemia
da Covid-19 que agora, em meados de agosto, acumula um passivo superior a cem
mil mortos e de mais de três milhões de casos confirmados no Brasil,
desestruturou uma economia que vinha cambaleante há anos, quando esta ensaiava os
seus passos em prol da recuperação do desenvolvimento nacional, e expôs
fragilidades do provimento de cuidados de saúde, tanto o público como o
privado.
Fortaleza,
a partir de março último, tomou a dianteira nas cifras de casos e óbitos de Covid-19,
tendo a insólita companhia de outras capitais brasileiras, como Manaus, Belém,
São Luís, São Paulo e Rio de Janeiro, alcançou o pico da pandemia na segunda
quinzena de maio, experimentando um pequeno interregno de platô, e já em junho
viu a sua ocorrência percorrer a alça descendente da curva epidêmica.
Essa
transformação favorável transcorreu ao tempo em que se observava no Ceará a
interiorização da doença, começando pelos municípios de maior porte populacional
(acima de cem mil habitantes), e gradualmente avançou entre os de médio porte
(de 30.001 a 100.000 habitantes) e, por fim, espalhou-se nos de pequeno porte
(até 30.000 habitantes), marchando das sedes municipais aos distritos e
povoados.
Transbordando
as divisas cearenses, outras unidades federativas, até então relativamente poupadas
pelo novo coronavírus, nos últimos dois meses passaram a sentir o gosto travoso
da doença e da morte, impingindo atroz sofrimento a seus concidadãos.
O
Ceará, ainda que tenha tido mais de oito mil vítimas fatais atribuídas ao novo
coronavírus, por ter partido cronologicamente na frente de outros estados,
sorve o arrefecimento da pandemia, patenteado no declínio da curva de contágio
que se reflete na redução dos casos sintomáticos e na retração da hospitalização
de pacientes, especialmente dos enfermos de maior gravidade, manifestos na
menor utilização de respiradores e na diminuição da taxa de ocupação de leitos
de UTI reservados à Covid-19.
A desaceleração da pressão de
atendimentos por novo coronavírus na rede hospitalar que está sendo verificada
no Ceará, entretanto, não significa o fim do sufoco do setor de saúde público e
privado.
Em função da flexibilização das
regras de isolamento social, além da preocupação de uma nova onda de contágio,
que é incerta mas possível, pois se trata de um agente infeccioso de
comportamento pouco conhecido e, portanto, se requer maior atenção, há uma
demanda grande de atendimentos que ficou reprimida.
Por conta da demanda exacerbada
de atendimentos derivados da Covid-19, houve uma decisão importante de cancelar
os procedimentos elegíveis, bem como de tudo o que não fosse urgência médica.
Mas uma vez debelado o pico da crise, isso volta com muito mais força. Pacientes
portadores de enfermidades crônicas, como hipertensão arterial e diabetes
mellitus, podem ter o estado de saúde agravado por complicações subjacentes que
vão exigir cuidados desdobrados e de maior complexidade técnica; cirurgias
eletivas suspensas se avolumaram e estendem a lista de espera que já era
inaceitável.
Até mesmo a oncologia,
especialidade que não estava oficialmente prevista a suspensão de suas
atividades, se ressentiu dos efeitos da pandemia em seus pacientes. A
legislação vigente dispõe que o tempo decorrido entre o diagnóstico de um
câncer e o início do seu tratamento não pode ser maior do que sessenta dias; no
entanto, incontáveis pacientes por razões pessoais ou institucionais ficaram
privados de um diagnóstico em um momento mais oportuno, o que deve ter
conduzido a uma proporção maior de diagnósticos em estádios mais avançados dessa
doença. Por outro lado, muitos pacientes que estavam em tratamento (cirurgia, radioterapia,
quimioterapia etc.), com receio de contaminação, uma vez que tinham ciência da
imunodepressão que os acompanhava, deixaram de ser tratados e, como se sabe, é
grande o risco de uma evolução rápida para um caso mais grave quando há
descontinuidade no tratamento oncológico.
Esta pressão da demanda
reprimida sobre o sistema de cuidados de saúde, público e privado, ocorre em um
contexto de maior fragilidade econômica do País, quando já não há mais tantas
alternativas de onde se extrair mais recursos, na sequência de uma descabida
inflação de custos no setor saúde, com parte dos seus insumos
injustificadamente majorados.
Os hospitais prestadores de
serviços, conveniados com o Sistema de Único de Saúde (SUS) ou contratados via
rede de saúde complementar, tiveram substancial retração das receitas auferidas
dos procedimentos eletivos que não foi compensada financeiramente pela receita
obtida com o atendimento à Covid-19, ou mesmo como resultado da sua ociosidade
operacional por não se adequarem às necessidades específicas de pessoas
acometidas pela pandemia.
Os planos de saúde, por exemplo,
passam presentemente por um aumento significativo de gastos que tiveram de ser
feitos para atender à demanda da pandemia, simultaneamente a uma queda
significativa da receita por conta da perda do poder aquisitivo da população,
redundando em incremento na inadimplência dos seus afiliados e no enxugamento
da sua carteira de clientes, algo que perdurará nos meses vindouros, até quando
se der a estabilização e, quiçá, o soerguimento da economia do País.
Os hospitais próprios da rede
pública, a despeito da crônica hipossuficiência de recursos financeiros que
atravessam, foram induzidos a redirecionarem seus leitos para o atendimento da
epidemia e a criarem leitos extras de UTI. Para tanto, receberam aporte de
numerários, via transferências governamentais, o que pode não ter sido
suficiente para o adequado atendimento de uma demanda excedente de pacientes,
muitos deles de maior gravidade e portadores de comorbidades, que concorreram,
adicionalmente, para a exaustão de materiais de consumo hospitalar. Para esses
hospitais seguirem com seus atendimentos, faz-se necessária a reposição dos
seus estoques, ou seja, hão de incorrer em gastos que não estariam, certamente,
nas suas previsões orçamentárias.
Como os recursos humanos dos
hospitais públicos eram amiúde limitados ou parcialmente inadequados, porquanto
especializados para outras entidades mórbidas, os hospitais precisaram arcar
com os custos da manutenção da sua força de trabalho inercial e, de igual modo,
buscar recursos humanos, por meio de contratação temporária, por vezes,
adotando a precarização da mão de obra, por intermediação de terceiros
contratantes.
Parcela expressiva da mão de
obra posicionada na linha de cuidados à Covid-19, como decorrência natural da
maior exposição ocupacional, migrou da função de cuidadora para a de assistida,
o que incluiu muitas baixas no quadro de pessoal dos estabelecimentos de saúde,
tanto em casos como em mortes associadas à doença, resultando em perdas
econômicas temporárias ou definitivas para o SUS, bem como em intangíveis
custos sociais.
Também não deve ser
desconsiderado o fato de que, entre os que superaram a fase aguda da Covid-19,
são cada vez mais apontadas as situações de pessoas, cujo restabelecimento se
faz de forma lenta ou de sobrevivência com algum grau de déficit funcional provocada
por danos físicos, além de duradouras sequelas psicológicas advindas do
iminente risco de morte ocorrido na vigência de um longo período de internação
hospitalar.
O pouco alentador panorama
traçado para as autoridades públicas brasileiras das três esferas de governo
(Federal, Estadual e Municipal) e dos três poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário), diante de tão ciclópico desafio na vigência e no período pós-pandemia,
cobra a união de esforços de todos contra o inimigo comum, o novo coronavírus,
pois a nossa grande nau, o Brasil, precisa sobrepujar a procela e rumar para um
porto seguro, de onde emergirá uma nação renovada e revigorada.
Que
Deus guarde a todos os brasileiros e nos permita sobrepujar essas vicissitudes,
nos tornando melhores seres humanos.
Prof. Dr.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico-sanitarista e economista da Saúde
*Publicado
In: Jornal do médico digital, 1(4): 54-8, agosto de 2020. (Revista Médica
Independente do Ceará). (Doc. Nº 8.2.577).
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