sábado, 29 de agosto de 2020

A DEMANDA DE CUIDADOS DE SAÚDE APÓS A COVID-19

         A pandemia da rotulada gripe espanhola, que grassou entre nós nos anos 1918-20, teve taxas de mortalidade e de letalidade bem superiores às observadas pela Covid-19, porém não se disseminou nos vastos rincões nacionais, poupando várias unidades federativas, tanto que, na terra alencarina, há pouco registro documental da passagem da “bailarina”, um dos epítetos aplicados a essa pandemia, associando-a a uma pretensa origem nas ilhas Baleares pertencentes à Espanha.

A epidemia de meningite meningocócica, que açoitou o Brasil de 1972 a 1974, atingiu boa parte do Brasil, produzindo elevadas taxas de incidência, de mortalidade e de letalidade; contudo, não causou tanta comoção nacional à conta do estado de exceção, na vigência do regime castrense que nos governava, quando então não se poderia divulgar na imprensa a ocorrência dessa epidemia, por suposta questão de segurança nacional.

A maneira como a Covid-19 chegou ao Brasil, aportada nas classes sociais mais abastadas, a partir das suas conexões internacionais e depois como transmissão comunitária, assumiu uma expansão avassaladora nas periferias urbanas e entre populações economicamente desprivilegiadas, gerando uma situação de epidemia de alcance geográfico não experimentado nos últimos cem anos.

A pandemia da Covid-19 que agora, em meados de agosto, acumula um passivo superior a cem mil mortos e de mais de três milhões de casos confirmados no Brasil, desestruturou uma economia que vinha cambaleante há anos, quando esta ensaiava os seus passos em prol da recuperação do desenvolvimento nacional, e expôs fragilidades do provimento de cuidados de saúde, tanto o público como o privado.

Fortaleza, a partir de março último, tomou a dianteira nas cifras de casos e óbitos de Covid-19, tendo a insólita companhia de outras capitais brasileiras, como Manaus, Belém, São Luís, São Paulo e Rio de Janeiro, alcançou o pico da pandemia na segunda quinzena de maio, experimentando um pequeno interregno de platô, e já em junho viu a sua ocorrência percorrer a alça descendente da curva epidêmica.

Essa transformação favorável transcorreu ao tempo em que se observava no Ceará a interiorização da doença, começando pelos municípios de maior porte populacional (acima de cem mil habitantes), e gradualmente avançou entre os de médio porte (de 30.001 a 100.000 habitantes) e, por fim, espalhou-se nos de pequeno porte (até 30.000 habitantes), marchando das sedes municipais aos distritos e povoados.

Transbordando as divisas cearenses, outras unidades federativas, até então relativamente poupadas pelo novo coronavírus, nos últimos dois meses passaram a sentir o gosto travoso da doença e da morte, impingindo atroz sofrimento a seus concidadãos.

O Ceará, ainda que tenha tido mais de oito mil vítimas fatais atribuídas ao novo coronavírus, por ter partido cronologicamente na frente de outros estados, sorve o arrefecimento da pandemia, patenteado no declínio da curva de contágio que se reflete na redução dos casos sintomáticos e na retração da hospitalização de pacientes, especialmente dos enfermos de maior gravidade, manifestos na menor utilização de respiradores e na diminuição da taxa de ocupação de leitos de UTI reservados à Covid-19.

A desaceleração da pressão de atendimentos por novo coronavírus na rede hospitalar que está sendo verificada no Ceará, entretanto, não significa o fim do sufoco do setor de saúde público e privado.

Em função da flexibilização das regras de isolamento social, além da preocupação de uma nova onda de contágio, que é incerta mas possível, pois se trata de um agente infeccioso de comportamento pouco conhecido e, portanto, se requer maior atenção, há uma demanda grande de atendimentos que ficou reprimida.

Por conta da demanda exacerbada de atendimentos derivados da Covid-19, houve uma decisão importante de cancelar os procedimentos elegíveis, bem como de tudo o que não fosse urgência médica. Mas uma vez debelado o pico da crise, isso volta com muito mais força. Pacientes portadores de enfermidades crônicas, como hipertensão arterial e diabetes mellitus, podem ter o estado de saúde agravado por complicações subjacentes que vão exigir cuidados desdobrados e de maior complexidade técnica; cirurgias eletivas suspensas se avolumaram e estendem a lista de espera que já era inaceitável.

Até mesmo a oncologia, especialidade que não estava oficialmente prevista a suspensão de suas atividades, se ressentiu dos efeitos da pandemia em seus pacientes. A legislação vigente dispõe que o tempo decorrido entre o diagnóstico de um câncer e o início do seu tratamento não pode ser maior do que sessenta dias; no entanto, incontáveis pacientes por razões pessoais ou institucionais ficaram privados de um diagnóstico em um momento mais oportuno, o que deve ter conduzido a uma proporção maior de diagnósticos em estádios mais avançados dessa doença. Por outro lado, muitos pacientes que estavam em tratamento (cirurgia, radioterapia, quimioterapia etc.), com receio de contaminação, uma vez que tinham ciência da imunodepressão que os acompanhava, deixaram de ser tratados e, como se sabe, é grande o risco de uma evolução rápida para um caso mais grave quando há descontinuidade no tratamento oncológico.

Esta pressão da demanda reprimida sobre o sistema de cuidados de saúde, público e privado, ocorre em um contexto de maior fragilidade econômica do País, quando já não há mais tantas alternativas de onde se extrair mais recursos, na sequência de uma descabida inflação de custos no setor saúde, com parte dos seus insumos injustificadamente majorados.

Os hospitais prestadores de serviços, conveniados com o Sistema de Único de Saúde (SUS) ou contratados via rede de saúde complementar, tiveram substancial retração das receitas auferidas dos procedimentos eletivos que não foi compensada financeiramente pela receita obtida com o atendimento à Covid-19, ou mesmo como resultado da sua ociosidade operacional por não se adequarem às necessidades específicas de pessoas acometidas pela pandemia.

Os planos de saúde, por exemplo, passam presentemente por um aumento significativo de gastos que tiveram de ser feitos para atender à demanda da pandemia, simultaneamente a uma queda significativa da receita por conta da perda do poder aquisitivo da população, redundando em incremento na inadimplência dos seus afiliados e no enxugamento da sua carteira de clientes, algo que perdurará nos meses vindouros, até quando se der a estabilização e, quiçá, o soerguimento da economia do País.

Os hospitais próprios da rede pública, a despeito da crônica hipossuficiência de recursos financeiros que atravessam, foram induzidos a redirecionarem seus leitos para o atendimento da epidemia e a criarem leitos extras de UTI. Para tanto, receberam aporte de numerários, via transferências governamentais, o que pode não ter sido suficiente para o adequado atendimento de uma demanda excedente de pacientes, muitos deles de maior gravidade e portadores de comorbidades, que concorreram, adicionalmente, para a exaustão de materiais de consumo hospitalar. Para esses hospitais seguirem com seus atendimentos, faz-se necessária a reposição dos seus estoques, ou seja, hão de incorrer em gastos que não estariam, certamente, nas suas previsões orçamentárias.

Como os recursos humanos dos hospitais públicos eram amiúde limitados ou parcialmente inadequados, porquanto especializados para outras entidades mórbidas, os hospitais precisaram arcar com os custos da manutenção da sua força de trabalho inercial e, de igual modo, buscar recursos humanos, por meio de contratação temporária, por vezes, adotando a precarização da mão de obra, por intermediação de terceiros contratantes.

Parcela expressiva da mão de obra posicionada na linha de cuidados à Covid-19, como decorrência natural da maior exposição ocupacional, migrou da função de cuidadora para a de assistida, o que incluiu muitas baixas no quadro de pessoal dos estabelecimentos de saúde, tanto em casos como em mortes associadas à doença, resultando em perdas econômicas temporárias ou definitivas para o SUS, bem como em intangíveis custos sociais.

Também não deve ser desconsiderado o fato de que, entre os que superaram a fase aguda da Covid-19, são cada vez mais apontadas as situações de pessoas, cujo restabelecimento se faz de forma lenta ou de sobrevivência com algum grau de déficit funcional provocada por danos físicos, além de duradouras sequelas psicológicas advindas do iminente risco de morte ocorrido na vigência de um longo período de internação hospitalar.

O pouco alentador panorama traçado para as autoridades públicas brasileiras das três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal) e dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), diante de tão ciclópico desafio na vigência e no período pós-pandemia, cobra a união de esforços de todos contra o inimigo comum, o novo coronavírus, pois a nossa grande nau, o Brasil, precisa sobrepujar a procela e rumar para um porto seguro, de onde emergirá uma nação renovada e revigorada.

Que Deus guarde a todos os brasileiros e nos permita sobrepujar essas vicissitudes, nos tornando melhores seres humanos.

Prof. Dr. Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Médico-sanitarista e economista da Saúde

*Publicado In: Jornal do médico digital, 1(4): 54-8, agosto de 2020. (Revista Médica Independente do Ceará). (Doc. Nº 8.2.577).

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog