terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

UMA FACADA

Por Alfredo Guarischi, médico

O dia nunca termina na emergência, mas, às vezes, durante a madrugada, consegue-se juntar parte da equipe no refeitório para comer pão de queijo recheado de histórias pinçadas entre centenas que lhe dão sabor especial.

Na última quinta-feira foram as histórias corriqueiras, como a do homem com forte dor no peito que não morreu porque a Cardiologia desobstruiu sua artéria coronária com um stent. Houve o parto daquela minúscula mineirinha que resolveu nascer antes da hora, exatamente durante a consulta de rotina de sua barriguda mamãe. Os pediatras salvaram um recém-nato que se sufocou no banho e um adolescente com traumatismo craniano. Não faltaram as fraturas de todos os tipos.

Mas faltava ouvir as histórias da turma da Cirurgia Geral, que opera todos os dias hérnias, vesículas e tumores, mas vibra ao vencer a morte que persegue as vítimas de trauma. Essa vibração parece ter um componente genético.

Há um século – agosto de 1918 –, médicos da UFMG partiram para servir na Missão Brasileira durante a Primeira Guerra Mundial. Chefiados pelo tenente-coronel Eduardo Borges da Costa, os capitães Machado e Lacerda e os tenentes Silva, Vasconcellos, Lodi e Carmo se destacaram pelos procedimentos cirúrgicos que realizaram na França, numa guerra de baionetas. Na recente véspera de feriado nacional, novamente a medicina mineira orgulhou a nação.

Todos os presentes no refeitório já sabiam que mais um esfaqueado havia sido operado, mas foi emocionante a descrição do atendimento e do controle do sangramento, na profundeza do mesentério, por onde passam todos os vasos intestinais. Houve a necessidade de ligar uma veia importante, suturar partes do intestino e, para tentar diminuir os riscos de complicações, realizar uma colostomia. O tratamento continuou por toda a tarde, noite e madrugada adentro, para devolver uma vida quase perdida. Era preocupante constatar tanto sangue e fezes – e ódio e sujeira – misturados. Juntos podem matar, e uma facada os uniu. No que dependeu dos cirurgiões, anestesistas, clínicos, enfermeiros e técnicos, o problema médico foi sanado.

O Dia da Independência nascia, e o paciente seguiria seu caminho. Tinha esse direito.

Foi mais uma missão cumprida nos 164 anos da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, em cujos ambulatórios e 523 leitos são realizados anualmente 86 mil atendimentos, 20 mil cirurgias, 2 mil partos e cateterismos e uma centena de transplantes em pacientes vindos de 96 municípios, quase 2 milhões de habitantes, sendo 72% desses procedimentos pagos pelo SUS. Naquele 6 de setembro, foram 67 cirurgias, sendo 15 de urgência.

Os hospitais de emergência lutam contra o tempo e recursos para salvar vidas. Seus cirurgiões – como soldados profissionais – são heróis, adequando-se ao anonimato e continuando felizes em ajudar brasileiros.

Fica o apelo ao próximo Presidente da República para que reflita sobre a importância do SUS, e a lembrança de que na primeira hora após um traumatismo é que se elege a vida ou a morte.

Nota: Publicado no O Globo – Ciência em 11/09/2018.

Fonte: Internet (circulando por e-mail e i-phones).

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