Por Gabriela Almeida, texto,
e Fernanda Barros, foto (Jornalistas, de O Povo)
Em conversa
com O POVO, ele lembra da infância em Canindé, fala sobre a fé que herdou dos pais
e conta como foi sua trajetória até se tornar o primeiro reitor negro da Uece.
Foi na mercearia do pai, em Canindé, 118,60
km de Fortaleza, que ainda menino Hidelbrando dos Santos Soares aprendeu a arte
da comunicação e da negociação. Do tempo e daquela terra carrega saudosas memórias,
a fé em São Francisco e um aprendizado de vida que, junto a uma extensa bagagem
profissional e acadêmica, o levou a ser reitor da Universidade Estadual do Ceará
(Uece), sendo o primeiro negro a assumir o cargo.
Chegou a prestar serviço por um tempo no Exército,
acreditando que na instituição encontraria possibilidade de um local para viver
enquanto, nas horas vagas, mergulhava nos livros.
Se desiludiu em pouco tempo. Apesar das dificuldades,
conseguiu engrenar depois nos estudos e se encontrou cursando Geografia na Uece,
onde fez mestrado, virou professor e consagrou uma carreira acadêmica.
A gestão chegou na sua vida por acaso, quando
foi convencido a concorrer ao cargo de diretor da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano
Matos (Fafidam) e venceu, ficando à frente da instituição entre 2004 a 2012.
Pegou gosto pela coisa. Feito uma dança surpresa,
ele seguiu sendo levado pelos caminhos da administração e hoje já se encontra no
segundo mandato consecutivo como reitor da Uece.
Em conversa com O POVO, Hidelbrando lembra da
meninice no sertão, fala sobre a fé que herdou dos pais e conta como foi sua trajetória,
costurando em uma mesma narrativa o ontem, o agora e o depois.
O POVO- Sobre a sua infância em Canindé, o que o senhor traz de memória
desse período?
Hidelbrando dos Santos - Primeiro o próprio território
lá, a própria cidade. Tem coisas assim muito marcantes. O rio Canindé, tenho uma
relação de infância com o rio, seja o rio para pegar água, que antigamente a gente
pegava água do rio, seja o rio para jogar bola.
Então, essa é uma imagem muito forte da infância.
Eu sou filho de um pequeno comerciante, de um agricultor que virou comerciante.
Os meus pais são originalmente agricultores. Família de agricultores.
E meu pai foi um pequeno comerciante, então
dez anos da minha vida entre os 10 até os 18 anos eu era bodegueiro. Eu ajudei meu
pai durante esse período todinho. A minha infância ela é assim misturada com o tempo
da escola, o tempo da rua, que era muito limitado, e principalmente o tempo da mercearia.
A mercearia é a minha referência maior de tudo,
de crescimento. Dessa fasezinha de infância para adolescência. De um certo entendimento
do mundo a partir daquele micro espaço ali da mercearia.
Foi lá que eu aprendi um monte de coisas que
até hoje eu tenho na minha vida atual, qualquer canto que eu esteja, nesse sentido
foi um ponto meio de síntese das coisas que eu aprendi na vida, no comércio, na
atividade comercial, naquele contato diário permanente com as pessoas. Foi muito
marcante. E lá também foi o local que eu desenvolvi uma relação muito forte com
a religiosidade.
Então, assim, eu também sou uma figura que ali
na infância, na adolescência fui mergulhado nessa espiritualidade franciscana. Tem
o São Francisco assim como uma espécie de guia, mentor.
Padroeiro que eu acredito que nos protege, então
essas coisas todas aqui de certa forma traçaram muito da personalidade que eu tenho
hoje, né? Uma família religiosa, uma vida infanto-juvenil muito fortemente ligada
à igreja, e uma experiência assim de trabalho que eu não via como trabalho.
OP - E a mercearia ainda hoje é ativa?
Hidelbrando - Minha mãe continua tocando
a mercearia. A grande finalidade da mercearia já não é mais propriamente comercial,
mas ela continua porque ela acha que tem que dar continuidade aquilo que o pai começou,
uma questão sentimental dela muito grande, ela está lá parece que ela está se encontrando
com ele (que já faleceu). Eu acho que a mercearia para ela é uma grande terapia.
É um refúgio também, de se achar ainda produtiva.
Eu fico imaginando que ela passa o dia ali se vendo também na relação mesmo que
imaginária com o meu pai. Então a bodega, para todos nós é um negócio mesmo mágico,
né? É um negócio que une todo mundo e é um negócio meio mágico assim na família,
pelas lembranças, pelas memórias...
OP- Dos aprendizados que levou desse período, quais aplica hoje como
reitor?
Hidelbrando - Eu particularmente acho
que a mercearia foi a minha grande imersão no mundo adulto. Então, mesmo criança,
é ali que eu mergulhei no mundo adulto. Talvez eu tenha passado por um processo
de amadurecimento também mais rápido que se eu tivesse só correndo na rua, né?
Embora eu gostasse demais de estar na rua, eu
gostasse demais de futebol, mas tinha um tempo muito grande da minha vida, ali entre
os 8 e 18 anos, que basicamente eu me dediquei à mercearia, tava lá na mercearia.
Mas eu acho que a mercearia acelerou meu processo
de visão de mundo, de interpretação de mundo. A mercearia me ajudou a ser uma pessoa
comunicativa também, o comércio faz isso com a gente.
A impressão que me dá é que a minha capacidade
de mediação, a minha capacidade de escuta, mas também de comunicação, tem muito
a ver com essa experiência, né? E da negociação propriamente dita também de negociar,
fazer, por exemplo, gestão pública, é você tá negociando todo o instante.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 7/07/25. Páginas Azuis. p.4-5.
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