sábado, 12 de julho de 2025

HIDELBRANDO DOS SANTOS II: do balcão da mercearia para a cadeira de reitor

Por Gabriela Almeida, texto, e Fernanda Barros, foto (Jornalistas, de O Povo)

OP- O senhor falou sobre a presença da religiosidade na sua vida. Como a religião teve impacto na sua caminhada e de certa forma também no seu trabalho?

Hidelbrando - Há um negócio muito forte na família da gente, e eu posso voltar lá para meus avós, que é um sentimento de caridade muito grande. Olha que eles eram pobres, não tô falando de gente que tem posse e é caridoso, é de gente que é muito pobre, mas é muito caridoso também. Então, essa relação com a ajuda, com apoio, esse sentimento de fraternidade com os outros é muito forte.

Vou dar um exemplo para vocês, meu pai foi [em um bairro de Canindé] e encontrou um senhor que morava numa casa muito isolada. Esse senhor tava em uma situação muito deplorável. Ele levou para casa e ficou com o senhor lá, e o senhor passou mais de 10 anos lá em casa, morando com a gente.

E assim, parece a coisa mais normal do mundo. Claro que não é normal. Mas a pessoa ficou com a gente lá morando e tudo mais. Antigamente não tinha o SUS. Você não tinha, por exemplo, em Canindé, uma ambulância. E você tinha uma maternidade muito acanhadazinha. Muitas mulheres tinham filhos em casa. E meu pai comprou um carro.

O meu pai se tornou o sujeito que ia pegar as mulheres para trazer para a maternidade. E em razão disso, o pessoal da política viu que ele poderia entrar na política. Ele se tornou vereador. Ele foi por três mandatos vereador, só com uma ação.

Então, a minha vida de juventude e adolescência é vendo meu pai, minha mãe, com ações assim que a gente se perguntava, porque que ele precisava fazer aquilo? Que que ele ganhava com aquilo? Não ganhava nada. Era uma ação de bondade.

Então, eu acho que isso tem tudo a ver com a religião e particularmente por eles já desde muito jovens, depois que casaram, entrarem logo imediatamente na Ordem Terceira Franciscana, e parece que isso impactou muito também nessa percepção deles em relação às questões franciscanas. Por exemplo, minha mãe criou há mais de 25 anos, em Canindé, o Café dos Romeiros.

A mãe via que a maioria das pessoas que iam para Canindé não tinha dinheiro para comer. Durante a festa, tem uma procissão que vai até a igreja do Monte. Ela resolveu que ia dar café para aquele povo ali. Eu faço parte das atividades do café. Depois que eu virei reitor tem um pessoal aqui da universidade que ajuda também com recurso, com dinheiro.

OP- E todos os anos o senhor vai?

Hidelbrando - Todos os anos eu tô indo para lá. E aderi a outro movimento, uma caminhada. A minha ainda é só de 20 km. Não é de 100. Mas assim, para mim, o Café dos Romeiros hoje é uma ação que eu considero muito impactante.

A gente pensa que é coisa pequena. Porque na verdade é coisa pequena, você pegar uma xícara de café, botar leite, dar um pão com a margarina, com manteiga e dar uma banana. Mas rapaz, quando você bota para a pessoa falar, parece que ela ganhou assim, um prêmio, é mais pela generosidade, que ela se pergunta 'por que as pessoas fazem isso pela gente, né?', de onde é que vem o dinheiro para fazer isso?

Aí ela sabe que isso é produto de uma movimentação, que não não é uma pessoa só que faz isso, é muita gente. Então assim, eu acho que essa questão da relação com a chamada atividade solidária, tem muito a ver também com essa origem também familiar, com a questão da religiosidade, da relação com o santo de Assis.

Eu sou um leitor da vida de São Francisco, seja da perspectiva mais espiritual ou da mais humana, porque sou um pouco fascinado pela história dele.

OP- Fora o café, falou que faz uma caminhada agora, como é que funciona?

Hidelbrando - A caminhada é mais para mim mesmo. Há um elemento terapêutico para mim na caminhada. Têm muitas romarias no período da Festa de São Francisco e tem uma caminhada histórica lá que é de Caridade a Canindé.

É uma caminhada que reúne muitos grupos familiares, amigos e tudo mais. É uma caminhada muito espiritual. É uma espécie assim de um esforço físico que está vinculado, na verdade, a uma dimensão muito espiritual também. E eu gostei de ir, achei bacana o descarrego assim, de estresse, essa questão da dimensão da vida que você começa a perceber.

Você vai caminhando ali, a questão do trabalho já não é mais a questão que vai lhe mover. Então é o momento também de você ver tanto a finitude da vida, mas também o que é importante. É um momento de terapia muito interessante, de muito silêncio também. Sempre você reza, canta, mas também você fica muito tempo em silêncio.

OP- Falando da sua formação, eu sei que o senhor é bacharel em geografia, já prestou assistência voluntária para o MST... acha que esse caminho foi muito impulsionado pelo seu histórico familiar? Essa ligação com a questão rural, agrária?

Hidelbrando - Meu pai tinha um projeto de vida para mim muito claro e muito decente. Ele queria que eu repetisse ele. Com 18 anos, eu queria estudar, queria sair de Canindé, tinha terminado o ensino médio. Aí ele fez uma casa, em um bairro mais afastado de lá onde a gente morava, e fez um ponto como mercearia na frente da casa. Ele me leva lá e diz: "Ó, isso aqui é a sua mercearia".

Eu cheguei em casa e fui conversar com a mãe. Eu disse: "Mãe, eu não quero ser comerciante. Quero estudar". Para ele foi difícil. Foi uma decepção. (Meus pais) são pessoas que estudaram muito pouco, mas minha mãe veio para Fortaleza e isso também acaba abrindo os horizontes dela.

Ela veio para cá para ser doméstica, mas tinha um desejo na vida, ela queria ser costureira. Ela queria um curso, ela queria ter um diploma. Então ela veio para Fortaleza para ser doméstica, mas pensando em fazer o curso de costureira. E ela conseguiu fazer tudo isso.

Depois ela teve a oportunidade de ser assistente de dentista. Ela foi trabalhar em uma casa como babá e nessa casa o dono era um dentista e transformou ela em assistente.

Meu nome inclusive é por causa dessa família, sou Hidelbrando porque o menino que ela era babá era Hidelbrando. É nessa relação da mãe aqui em Fortaleza, que ela botou na cabeça que os filhos tinham que estudar.

Eu queria estudar e a mãe era a que movia essas ideias de que a gente estudasse, tivesse o diploma. Na família do meu pai, tinha dois tios que tinham feito isso. Eram os únicos da família que tinham feito isso. Um fez pedagogia, o outro fez Direito. Então, eles eram uma espécie de modelo pra gente. Eu disse: "Não, se eles conseguiram, eu também vou conseguir".

E botei na cabeça que eu ia ser economista. Porque lá em Canindé eu passei a conviver com o pessoal do sindicato rural. Eu botei na cabeça que eu queria ser economista porque eu achava que a economia era a profissão que poderia mudar o mundo.

Aí minha mãe foi falar pro meu pai, meu pai "eu não tenho casa lá, como eles (os filhos) vão morar em Fortaleza? Eles só vão morar quando eu comprar a casa".

Aí eu me alistei no Exército. Eu disse 'vou me alistar no exército e eu vou morar em Fortaleza porque eu vou ficar lá no quartel e à noite eu estudo'. Eu passo o dia no quartel e à noite eu estudo. E eu fiz essa besteira.

Fiz a minha licença, fui convocado, aí começou a primeira semana de atividade. Cara, pensa em um arrependimento assim do tamanho do planeta, do mundo? Era humilhação em cima de humilhação.

OP- Mas ai já havia passado no vestibular?

Hidelbrando - Não, eu vim para morar, eu tinha que ter um lugar para morar. Eu resolvi que eu vinha pro Exército, que eu morava no Exército e a noite eu estudava. Eu achava que isso era possível, depois descobri que não era possível.

Mas eu tive uma sorte danada. Meu primeiro exame que eu fiz de físico não deu problema nenhum. Só que eu sabia que eu tinha uma pequena hérnia no umbigo, mas como eu não tinha problema, queria era ficar, não disse nada.

Passou a semana todinha chegou um oficial e disse assim: "Tem alguém ainda pendente de exame médico? Que o médico vai fazer os outros exames agora". Eu levantei o braço e disse: "Eu tenho uma hérnia aqui umbilical e eu acho que eu não tenho condição de ficar aqui não".

Foi por isso que eu fui dispensado, depois de uma semana lá. Aí voltei para Canindé, voltei desesperado. Foi quando mãe conversou com uma tia nossa que morava na Praia Futuro. do Resultado, vieram os dois (ele e a irmã) morar na casa dos tios.

Quando eu chego aqui, eu vinha com destino de fazer economia, eu passo a me relacionar com um grupo de jovens muito fortemente ligado às comunidades de bases, ligados aos movimentos políticos mais à esquerda.

E aí eu conheço um professor que era das escolas aqui de Fortaleza, e ele passa a ser uma espécie de mentor do grupo, era o mais intelectual, e ele era da geografia e ele passa a mostrar que a geografia é a ciência que vai mudar o mundo. E nessa brincadeira eu sou completamente influenciado por esse professor e decido fazer geografia.

Eu vou começar a fazer uma relação dessa geografia com o movimento camponês, com a questão agrária, no mestrado, bem mais a frente. Eu me aproximo da natureza não somente política como teórica, em particular com os movimentos de luta pela terra.

Então a minha associação com o MST, como assessor e tudo mais, ela acontece após a graduação. É na universidade, em particular já como professor universitário e já nas primeiras grandes ações de pesquisa, que eu me vejo ali como uma pessoa que além da origem eu preciso trabalhar nisso, e é partir dali que eu crio uma relação com os movimentos sociais, não só com o MST.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 7/07/25. Páginas Azuis. p.4-5.

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