quarta-feira, 26 de agosto de 2015

DONA FELÍCIA


Completaria 100 primaveras no ano seguinte. Nesse dezembro tive que operá-la durgência, por obstrução intestinal. Era diabética e hipertensa, controladas. Há quatro meses a colonoscopia atestara tumor no cólon sigmoide, cuja biópsia revelou adenocarcinoma, i.e., câncer. Indiquei a operação embora aludindo ao risco cirúrgico maior pela morbidade (conjunto de causas produtoras de uma doença) aumentada nessas circunstâncias. Lembrei a ineficácia de tratamentos alternativos (quimioterapia) na permanência do tumor.
A família desautorizou a conduta cirúrgica, mesmo contrariando dona Felícia, mais corajosa e disposta. Perdemos contato por alguns meses. Em uma manhã chuvosa de sábado, um dos seus 15 filhos me convocou para vê-la, então na Emergência daquele hospital. Constatei uma ocorrência grave, a exigir solução urgente. Aberto o abdome, revelou-se massa envolvendo e ocluindo parcialmente o cólon esquerdo. A competente anestesia pelo dr. José Telles possibilitou uma operação segura e breve.
Vale lembrar que os idosos requerem o mesmo cuidado anestésico como as crianças, em relação às constantes fisiológicas. São os dois pólos da vida, por igual carentes de especiais atenções clínicas. Sogra de uma amiga de minha mãe, das sessões de crochê e tricô, tínhamos amiúde boas notícias de dona Felícia, já aos 102 laboriosos anos. Pessoas desavisadas condenam operação nos mais velhos, ignorando que indivíduos senis, em emergências acutíssimas, estão gravíssimas para não serem operados, ou dispensados do bisturi.
Assim deve acontecer na apendicite aguda, nas perfurações de úlceras pépticas gastro–duodenais ou de diverticulites, como nas complicações iminentes das infecções intestinais resultando em dilatação aguda (megacólon tóxico) das colites ulcerativas inespecíficas. Após rápida correção de eventuais desequilíbrios fisiológicos importantes, estes clientes serão entregues ao cirurgião, sob pena de morte.
É quando este se impõe, não apenas por saber operar, mas, sobremaneira, por reconhecer a necessidade de realizar ou não a operação. Aliás, esta é a palavra correta, e não “cirurgia”, como dissecamos linguisticamente aqui em 29/2/2012. Os procedimentos cirúrgicos (como o tricô e o crochê) são trabalhos manuais, mais ou menos complexos e/ou delicados, aos quais nos habituamos pela prática repetida, quase sempre igual.
A familiaridade com a clínica cirúrgica ditará a urgência da intervenção operatória, ou da abstenção desta, optando-se por medidas incruentes. Tal raciocínio confere verossimilhança maior à soberania da clínica. Realmente, o bom cirurgião é um clínico que sabe operar. Detalhamos isto aqui em 16/10/2007, e sempre dessa arte ensinamos aos futuros cirurgiões da Faculdade de Medicina da UFC.
Dona Felícia, aos 103 anos, queixava-se apenas de “um probleminha de vista”! Fazia sol quando morreu aos 104, quase quatro após a operação.
(*) Médico. Professor Emérito da UFC. Ex-presidente e atual secretário geral da Academia Cearense de Letras.
Fonte: O Povo, Opinião, de 5/8/2015. p.12.

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