sábado, 6 de janeiro de 2018

DOM ALOÍSIO: exemplo de mansidão

Por Rita Célia Faheina (*)

Carioca pediu perdão e ele respondeu que já o tinha perdoado. Brincou e se despediu como se aquele não tivesse sido o articulador do seu sequestro

Fim de tarde. Da janela, via o Fusquinha estacionar perto da pitombeira. Enquanto caminhava até o estúdio, ele ia abençoando a todos. Sempre sorridente, atencioso, parava quando alguém queria uma bênção, uma palavra de conforto. Era a hora do Ângelus, momento de oração para os cristãos católicos, como eu. Dava um tempo no que estava fazendo para rezar com nosso pastor, o cardeal Aloísio Lorscheider, o então arcebispo de Fortaleza. Era um momento de graças para os ouvintes da Rádio AM do POVO. Todos os dias, às 18 horas, os católicos ouvintes rezavam com o arcebispo pela emissora.
Ele era um pastor sempre atento às suas ovelhas. O cardeal tinha a habilidade de resolver conflitos. Greve dos professores, chamavam-no para intermediar; ocupação do MST, lá estava ele como mediador nas negociações com autoridades governamentais. Sempre sereno, com voz mansa e argumentando rumo a um acordo. E, na maioria das vezes, conseguia.
Era respeitado e querido por todos. Em sua agenda, tinha compromissos aos quais fazia questão de não faltar, como as celebrações com os índios e a visita aos presidiários.
E foi numa dessas idas ao então Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em Aquiraz, em 1994, que ocorreu o sequestro do nosso pastor junto com religiosos, defensores dos Direitos Humanos e repórteres que cobriam a visita. Os detentos se rebelaram e o ameaçavam de morte.
Os presos comandados por “Carioca” (a foto de Antônio Carlos de Souza Barbosa, rendendo o arcebispo, correu o mundo) saíram do presídio levando os reféns. Foram dias de angústia para nós. Mais uma vez, dom Aloísio me surpreendeu pela certeza de que tudo terminaria bem. Isso ele nos disse no dia da entrevista coletiva após o resgate pela polícia. Ele até procurava motivos para não incriminar os presos fugitivos. Imaginem!
Para minha maior admiração, o santo pastor não quis desmarcar a missa que relembra a Ceia do Senhor, na quinta-feira quando é realizada a cerimônia do lava-pés, anualmente celebrada no presídio. Na época, pedi para acompanhar pelo O POVO, a visita do cardeal. A serenidade demonstrava que não tinha receio de que algo ruim acontecesse de novo.
Após a celebração (quando lavou e beijou os pés de 12 detentos), ele pediu para visitar aquele que o ameaçara de morte. “Carioca” estava em cela solitária e dom Aloísio quis saber se o estavam tratando bem. Antônio Carlos pediu perdão e ele respondeu que já o tinha perdoado. Nem lembrava mais. Brincou com ele e se despediu como se aquele não tivesse sido o articulador do seu sequestro. Vi ali a grandeza espiritual do arcebispo.
Para a tristeza de todos, dom Aloísio pediu - e foi atendido pela Santa Sé -, transferência para outra diocese porque a saúde estava debilitada e não aguentava comandar uma arquidiocese grande como Fortaleza. Foi enviado a Aparecida (SP). Comoção geral entre os fiéis católicos por aqui. Estávamos muito acostumados com nosso pastor que por aqui ficara 22 anos.
Em Aparecida, sua missão pastoral continuou entre os excluídos, os injustiçados, os mais necessitados. Quando completou 75 anos (lei expressa no Direito Canônico), pediu afastamento e, em poucos anos, foi morar em Porto Alegre. E lá começou suas idas e vindas ao hospital. Recebi a missão, como repórter, de ligar todas as tardes para saber notícias do cardeal.
Não aceitava sua partida (perdão por esse momento, meu Deus!). Achava que a tristeza não me permitiria escrever um texto sobre a morte do meu amado pastor. Não tive querer. Minha editora Fátima Sudário “ordenou” que eu iria. Viajei de coração partido para Porto Alegre acompanhada da repórter fotográfica Talita Rocha.
O Natal de 2007 ficou marcado para sempre na minha vida. Foi o primeiro que passei longe da família, mas ao lado do corpo daquele por quem tinha um amor fraternal. Uni minha emoção à dos familiares e franciscanos, seus irmãos de fé e missão. Conheci o quarto onde dom Aloísio passara os últimos anos de vida e comprovei, mais uma vez, que cumprira os votos de pobreza e simplicidade. No pequeno espaço, poucos móveis, mínimas peças do vestuário litúrgico. Não tenho dúvidas de que nosso inesquecível pastor agora contempla a face de Cristo e assumiu a missão de interceder pelos excluídos, injustiçados e carentes. Tenho a certeza de que um dia vamos invocá-lo como mais um santo dos pobres.
 (*) Jornalista
Fonte: O Povo, de 23/12/2017. Opinião. p.9.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog