Carioca pediu perdão e ele respondeu que já o tinha perdoado. Brincou e se despediu como se aquele não tivesse sido o articulador do seu sequestro
Fim
de tarde. Da janela, via o Fusquinha estacionar perto da pitombeira. Enquanto
caminhava até o estúdio, ele ia abençoando a todos. Sempre sorridente,
atencioso, parava quando alguém queria uma bênção, uma palavra de conforto. Era
a hora do Ângelus, momento de oração para os cristãos católicos, como eu. Dava
um tempo no que estava fazendo para rezar com nosso pastor, o cardeal Aloísio
Lorscheider, o então arcebispo de Fortaleza. Era um momento de graças para os
ouvintes da Rádio AM do POVO. Todos os dias, às 18 horas, os católicos ouvintes
rezavam com o arcebispo pela emissora.
Ele era um pastor sempre atento às suas ovelhas. O
cardeal tinha a habilidade de resolver conflitos. Greve dos professores,
chamavam-no para intermediar; ocupação do MST, lá estava ele como mediador nas
negociações com autoridades governamentais. Sempre sereno, com voz mansa e
argumentando rumo a um acordo. E, na maioria das vezes, conseguia.
Era respeitado e querido por todos. Em sua agenda, tinha
compromissos aos quais fazia questão de não faltar, como as celebrações com os
índios e a visita aos presidiários.
E foi numa dessas idas ao então Instituto Penal Paulo
Sarasate (IPPS), em Aquiraz, em 1994, que ocorreu o sequestro do nosso pastor
junto com religiosos, defensores dos Direitos Humanos e repórteres que cobriam
a visita. Os detentos se rebelaram e o ameaçavam de morte.
Os presos comandados por “Carioca” (a foto de Antônio
Carlos de Souza Barbosa, rendendo o arcebispo, correu o mundo) saíram do
presídio levando os reféns. Foram dias de angústia para nós. Mais uma vez, dom
Aloísio me surpreendeu pela certeza de que tudo terminaria bem. Isso ele nos
disse no dia da entrevista coletiva após o resgate pela polícia. Ele até
procurava motivos para não incriminar os presos fugitivos. Imaginem!
Para minha maior admiração, o santo pastor não quis
desmarcar a missa que relembra a Ceia do Senhor, na quinta-feira quando é
realizada a cerimônia do lava-pés, anualmente celebrada no presídio. Na época,
pedi para acompanhar pelo O POVO, a visita do cardeal. A serenidade demonstrava
que não tinha receio de que algo ruim acontecesse de novo.
Após a celebração (quando lavou e beijou os pés de 12
detentos), ele pediu para visitar aquele que o ameaçara de morte. “Carioca”
estava em cela solitária e dom Aloísio quis saber se o estavam tratando bem.
Antônio Carlos pediu perdão e ele respondeu que já o tinha perdoado. Nem
lembrava mais. Brincou com ele e se despediu como se aquele não tivesse sido o
articulador do seu sequestro. Vi ali a grandeza espiritual do arcebispo.
Para a tristeza de todos, dom Aloísio pediu - e foi
atendido pela Santa Sé -, transferência para outra diocese porque a saúde
estava debilitada e não aguentava comandar uma arquidiocese grande como
Fortaleza. Foi enviado a Aparecida (SP). Comoção geral entre os fiéis católicos
por aqui. Estávamos muito acostumados com nosso pastor que por aqui ficara 22
anos.
Em Aparecida, sua missão pastoral continuou entre os
excluídos, os injustiçados, os mais necessitados. Quando completou 75 anos (lei
expressa no Direito Canônico), pediu afastamento e, em poucos anos, foi morar
em Porto Alegre. E lá começou suas idas e vindas ao hospital. Recebi a missão,
como repórter, de ligar todas as tardes para saber notícias do cardeal.
Não aceitava sua partida (perdão por esse momento, meu
Deus!). Achava que a tristeza não me permitiria escrever um texto sobre a morte
do meu amado pastor. Não tive querer. Minha editora Fátima Sudário “ordenou”
que eu iria. Viajei de coração partido para Porto Alegre acompanhada da
repórter fotográfica Talita Rocha.
O Natal de 2007 ficou marcado para sempre na minha vida.
Foi o primeiro que passei longe da família, mas ao lado do corpo daquele por
quem tinha um amor fraternal. Uni minha emoção à dos familiares e franciscanos,
seus irmãos de fé e missão. Conheci o quarto onde dom Aloísio passara os
últimos anos de vida e comprovei, mais uma vez, que cumprira os votos de
pobreza e simplicidade. No pequeno espaço, poucos móveis, mínimas peças do
vestuário litúrgico. Não tenho dúvidas de que nosso inesquecível pastor agora
contempla a face de Cristo e assumiu a missão de interceder pelos excluídos,
injustiçados e carentes. Tenho a certeza de que um dia vamos invocá-lo como
mais um santo dos pobres.
(*) Jornalista
Fonte: O Povo, de
23/12/2017. Opinião. p.9.
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