Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Dizem que medicina é
arte e ciência em constante reformulação. Não sei a quem atribuir a autoria do
dito: “A medicina é a ciência das verdades transitórias”. A profissão médica
sempre foi misteriosa e, portanto, sujeita a variadas interpretações. É a mais
criticada e ao mesmo tempo a mais solicitada, pois quando a doença chega, todos
passamos a nos lembrar que a vida é breve. Ser paciente qualquer um pode vir a
ser, em algum momento da vida, e necessitar da palavra e acompanhamento médico.
Desde o século XVII,
a ciência moderna somente acredita na experimentação controlada, demonstrada e
reproduzível. O ideal da certeza se transforma na medida de todo conhecimento.
A medicina não pode então ficar a par da filosofia. O modelo da física
newtoniana (sem dúvida de muita utilidade para a ciência pura), não pode ser
aplicado por quem lida com a vida e a morte.
Primum non nocere ou primum nil nocere, é uma frase em latim usada em bioética, e que
significa “primeiro, não prejudicar”. Também conhecido como ‘princípio da não
maleficência’ continua tão válido agora quanto o foi, a milênios. Diante da
moderna práxis médica fica a pergunta: é a Medicina uma ciência?
Há muito tempo
especula-se quanto a Medicina ser ciência positiva ou ciência aplicada.
Na época de
Aristóteles, o saber pleno correspondia a Deus. O que se pode fazer hoje em
busca da sabedoria, é imitar Deus, embora exista outro saber, o do intellectus
ou inteligência, que está ligado à capacidade de aprender mentalmente os
princípios da realidade. Os princípios que se apresentam ou se mostram, assim,
não se demonstram, pois são revelações ou evidências primárias e
incontestáveis. Diferente de outro tipo de saber (epistéme ou ciência),
cujos princípios se demonstram. Sem desejar entrar em especulações filosóficas,
a ideia do sagrado foi absorvida pela cultura ocidental, por isso o médico é
“santificado” em nossa cultura.
Nós, os médicos,
fomos “instados” a ocultar nossos sentimentos dos pacientes. Como se alguém
pudesse controlar os próprios sentimentos. Mas é dessa maneira que pensam
alguns leigos ou doutos de diversas naturezas.
Pergunto: Quem,
normalmente constituído, é capaz de se acostumar à dor e ao sofrimento de seus
semelhantes? Será que somos sádicos? Nascemos com alma de açougueiro? Sem nada
termos contra a útil e honesta profissão dos magarefes. Somos treinados com base em comunicações
científicas enxutas, precisas, lineares e claras, o que torna mais difícil a
prática da literatura criativa.
No entanto, a
vivência médica exibe característica diversa das demais, pois ficamos
conhecendo as pessoas enquanto doentes. O médico vive atarantado com situações
de morte e vida. A todo instante tem de tomar decisões concernentes a esse em
mais caro do ser humano. O resultado de viver em situação estressante, está
refletido na estatística de alto risco da vida profissional. Taxa mais alta de
suicídios, distúrbios emocionais, dependência de álcool e drogas e casamentos
desfeitos ocorrem em maior número entre os doutores.
Poucos sabem, mas
durante as residências médicas, 30% dos jovens esculápios sofrem de crise
depressiva. As taxas de divórcio são 10% a 20% acima da média populacional.
[Conferir em O casamento de médicos: um guia de sobrevivência para o casal,
escrito pelo casal de psicólogos americanos Wayne e Mary Sotilel].
A posição que ocupa
a Medicina, se arte ou ciência, dentre os demais campos do conhecimento humano
não é bem definida. Há uma função social na Medicina que não se encaixa em
nenhuma área. A psicanálise e a psiquiatria, por exemplo, que abordam o sintoma
de uma pessoa que sofre, mesmo com os avanços técnicos conhecidos por todos,
contribuem para humanizar ainda mais a Medicina.
Sem poder aplicar a
concepção do cientista inglês Isaac Newton (1642-1722) teve o médico de
procurar dentro da individualidade, da subjetividade, em relações que mantém
consigo mesmo e, com todos com os quais tem contato, o princípio da incerteza
do físico alemão Werner Heisenberg (1901 – 1976) com a física quântica, base da
ciência contemporânea, descartando os princípios de Newton ou o esquema
cartesiano. As incertezas levam ao humano. Não se pode saber com precisão o que
acontecerá no futuro.
A ciência não pode
explicar tudo, nem é a verdade absoluta, pois é humana e se falarmos em humana
nos vem à ideia o padecimento. Portanto, a Medicina como ciência não existe,
existe sim um discurso científico utilizado por ela. Já no discurso do paciente
está situada e mascarada a sua verdade particular. A medicina não pode
generalizar o sofrimento humano. Apesar disso, nada impede que classifiquemos e
normalizemos procedimentos diagnósticos ou terapêuticos. A medicina, por mais
que nos adiantemos, é uma soma de saberes.
José Ortega y Gasset
(1883-1955), filósofo, ensaísta, jornalista e
ativista político espanhol:
La medicina no es ciencia. Es precisamente una
profesión, una actividad práctica. Como tal, significa un punto de vista
diferente de la ciencia. Se propone curar o mantener la salud en la especie
humana. A este fin hecha mano de cuanto parezca a propósito: entra en la
ciencia y toma de sus resultados cuanto considera eficaz, pero deja el resto.
Deja de la ciencia sobre todo lo que es más característico: la fruición por lo
problemático. Bastaría esto para diferenciar radicalmente la medicina de la
ciencia. Ésta consiste en un “prurito” de plantear problemas. Cuanto más sea
esto, más puramente cumple su misión. Pero la medicina está ahí para aprontar
soluciones. Si son científicas, mejor. Pero no es necesario que lo sean. Pueden
proceder de una experiencia milenaria que la ciencia aún no ha explicado ni
siquiera consagrado.
[Ortega y Gasset J.
Misión de la universidad. Obras completas. Tomo IV. Cuarta Edición. Madrid:
Revista de Occidente. 1957, p 340].
Devido a esta
imprecisão entre ciência e arte, o médico volta-se constantemente para a
literatura, buscando encontrar refúgios, meios de comunicar a condição humana,
suas alegrias e reconhecimento, seus alívios e pesares. O médico não cria, ele
alivia. Por isso, devemos rever o conceito de cura, pois aquele que reconstitui
um modelo artístico não é criador e sim, preservador da arte já existente. Será
que os restauradores são artistas, também, ou técnicos em reconstrução?
Sinceramente, não sei, pois as artes e os ofícios muito se confundem. Arte é
expressar o ideal de beleza em obras humanas. Ofício é qualquer atividade
especializada de trabalho.
E, diante dessa
encruzilhada, “a profissão médica tem uma atração histórica para as letras, que
nunca chama durante a noite, nem em tempo inclemente, e permite ao escritor
beber quanto quiser ao almoço". (GORDON, Richard. A assustadora História
da Medicina. Ediouro. p.193).
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES). Consultante
Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros
neonatologistas brasileiros.
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